Uma conversa humanitária: entrevista com uma médica ligada ao “Médicos Sem Fronteiras”
- Jornal A Sístole
- 3 de nov. de 2021
- 7 min de leitura

por Orlando Dias Canichio
Há 50 anos, a “Médicos Sem Fronteiras (MSF)” começava seus trabalhos pelo mundo. Mais do que nunca, a ajuda humanitária tem sido fundamental para trazer atendimento médico, um direito universal, àqueles que não têm acesso. Nesse sentido, o Jornal “A Sístole” convidou a Dra. Junia Maria Drumond Cajazeiro, médica pediatra e mestranda em Saúde Pública, atuante no MSF desde 2016, para trazer um pouco de suas experiências e sua visão sobre a atuação da instituição.
Junia Maria Drumond Cajazeiro, médica pediatra, professora e mestranda em Saúde Pública. Atua no Médicos Sem Fronteiras desde 2016. Com a organização, já atuou em países na África, Ásia e Oriente Médio, além de ter atuado também no Brasil pela instituição.
O trabalho humanitário tem sido fundamental ao longo dos anos para ajudar, principalmente, a salvar vidas. Nesse sentido, quais foram suas maiores motivações para entrar no MSF?
A minha maior motivação para entrar no Médicos Sem Fronteiras é de que um dia não seja mais necessário o trabalho humanitário, rsrs. Bom, no início da faculdade eu tive uma palestra com uma pessoa da instituição, uma cirurgiã, que mostrou fotos e contou um pouco do seu trabalho com a Médicos Sem Fronteiras em alguns lugares do mundo. Ao escutar sobre as histórias dela, eu me apaixonei pelo trabalho humanitário e pela ideia de levar ajuda a pessoas em locais de difícil acesso ou que ninguém quer ir. Não necessariamente salvar vidas, mas levar atendimento médico para quem mais necessita e menos tem acesso.
Como foi o processo para entrar no MSF?
Para entrar no Médicos Sem Fronteiras, como médico, existem duas possibilidades: a primeira é ser recrutado como médico local, caso tenhamos algum projeto da organização no Brasil. Nesse caso, o MSF faz divulgação no local de atuação e também no site, e aí você entra no processo seletivo para atuar dentro do país.
A segunda possibilidade, que foi o processo seletivo que eu fiz, é para atuar como expatriado. O MSF exige que você tenha dois anos de experiência na área (residência não conta como anos de experiência) e que fale uma segunda língua (inglês ou francês). Se você se encaixa nisso, você encaminha um e-mail com o seu currículo e carta de intenção e entra para o processo seletivo, que tem algumas etapas, até que você seja colocado no "pool" de expatriados. No site do MSF fala direitinho sobre os pré-requisitos para cada área e como mandar o e-mail, se você se encaixa neles.
A partir do momento que você está no “pool”, o MSF tenta encaixar você em um projeto que tenha o seu perfil e que você também tenha o perfil desejado. Você aceitando o projeto, você vai.
Você já atuou em diferentes países de diferentes continentes, cada um com sua pluralidade cultural. Quais os desafios, ao longo de suas estadias, para conseguir se adaptar a esses lugares e seus costumes?
Escrevi um texto sobre isso no meu primeiro projeto, vou citar uma parte dele aqui:
Gullayin e meu amor por sua tradução
No meu primeiro contrato com Médicos Sem Fronteiras, cheguei completamente crua num país que não entendia muito bem sua cultura. Apesar de ter lido todos os documentos que me foram enviados, ainda me faltava “ter calçado o sapato do outro”. E, para calçar o sapato de alguém, não basta apenas você enfiá-lo no pé e dar uma volta no quarto e tirar umas fotos. Você precisa ir além, subir morro, descer escadas, andar alguns quilômetros e, a partir daí, aquela tira em cima do peito do pé, tão bonita à primeira vista, pode acabar apertando demais e, em alguns pés, pode até machucar e sangrar. E aí então, você consegue entender a realidade do outro. E também começa a perceber que um sapato que calça perfeitamente no seu coleguinha do lado, pode nem entrar no seu pé, ou te machucar. Enfim, cheguei no Uzbequistão segura de mim e da minha realidade, mas ainda não conseguia entender que minha realidade às vezes não caberia na vida do outro. Acreditava que somente precisava de alguém me traduzindo “ipsis litteris” pra eu conseguir convencer os outros daquilo que eu falava. E comecei assim, a trabalhar com Gullayim. Gullayim era minha tradutora. Ia comigo no hospital para conversar com os pacientes e os médicos locais. Começou a ir comigo também em algumas vendas, quando decidi fazer vestidos com panos locais e quando queria comprar alguns presentes para pessoas aqui no Brasil. Ela traduzia de uma forma tão rápida, que parecia até que já sabia o que eu pensava. E, aos poucos, com sua tradução, comecei a entender algumas palavras em russo e outras tantas em Karakalpak. Mas, mais importante ainda, comecei a entender a cultura local, pois Gullayin não somente traduzia, como também me explicava o que aquele ato significava para eles. E a recusa de uma avó em usar medicação para tuberculose, que me parecia um tanto quanto infundada, se traduziu na cultura local de se tratar tuberculose com leite de camelo. E, após entender a situação, a minha orientação, ao invés de ser “temos que usar remédio e pronto” passou a ser “podemos dar a medicação juntamente com o leite de camelo, para uma recuperação completa” e, assim, chegamos num consenso. Gullayin, com toda sua inteligência e delicadeza, me mostrou que, para "calçar o sapato de alguém", precisa-se muito mais do que somente colocá-lo no pé e continuar enxergando a vida do meu jeito. Para calçar o sapato de alguém, precisamos também tentar enxergar com o olhar do outro.
Mas, resumindo, trabalhar com outras culturas significa não entender, às vezes, alguns tratamentos tradicionais locais, algumas crenças, algumas atitudes, que somente com a humildade de se, de fato, tentar olhar com os olhos do outro, a gente consegue aprender a como lidar com essas questões. Como sempre digo em algumas palestras que eu dou: o que ter trabalhado com MSF me ensinou de mais importante é, sem sombra de dúvida, que a minha verdade não é absoluta.
Ao longo desses 5 anos na instituição, você deve ter colecionado inúmeras experiências. Gostaria de compartilhar alguma que te marcou muito, seja como profissional médica ou como pessoa?
Eu estava em um centro de saúde em Boa Vista. Lá, atendia a população local e também refugiados, pelo SUS. Roraima teve um aumento expressivo de sua população desde o aumento de influxo de refugiados venezuelanos no Brasil, o que gerou um aumento na demanda na saúde local, que ficou difícil de ser suprido pelas equipes de saúde da região. Em 2018, o MSF começou a atuar em Roraima com um projeto de saúde mental, mas vendo essa grande necessidade de atendimento médico, em 2019, houve a decisão de se começar a ter atendimento médico do MSF para a população.
Eu fui para Boa Vista em julho de 2019, para começarmos o projeto de atendimento médico. Em um dos dias que estava atendendo no centro de saúde, eu tive como paciente uma criança de dois anos, que veio com sua mãe e mais um irmão. No meio desse atendimento, essa mãe percebeu que usava um pingente de olho grego em um colar e me perguntou se eu gostava de olho grego. Respondi que sim. Nisso, ela me falou que queria me dar um presente, e perguntei o porquê de ela querer me dar um presente. Ela, então, novamente me perguntou se eu aceitaria um presente dela e me mostrou algumas pulseiras que ela fazia para vender para comprar comida para si e seus filhos. Eles estavam dormindo na rua, pois ainda não tinham conseguido abrigo no local. E, com isso, eu falei que sim, que aceitaria o presente. E, enquanto ela colocava a pulseira em mim, ela, com lágrimas nos olhos, me falou: "Você foi a primeira pessoa que me olhou nos olhos desde que cheguei aqui no Brasil, e a primeira pessoa que tratou bem meus filhos. Eu não queria estar na rua. Eu não queria estar aqui. Queria estar no meu país, falando minha língua, na minha casa, mas não posso".
Então... nenhum refugiado gostaria de ser um refugiado. Não é uma escolha, é uma necessidade.
Quais conselhos você daria para discentes de medicina ou profissionais que sonham em trabalhar com ajuda humanitária?
Eu daria conselhos para poder trabalhar com ética e respeito pelo paciente, em qualquer lugar que esteja. Também daria o conselho de que a ajuda médica humanitária é algo necessário no mundo em que vivemos, por inequalidades diversas, e que deve ser vista como uma ação que vai gerar acesso à saúde para aqueles que não têm a garantia de conseguir um atendimento ou a resolução de seus problemas de saúde. A ideia de que seremos "heróis" ou "salvadores" deve ser deixada de lado, uma vez que ela só perpetua a desigualdade entre pessoas e populações.
Como o MSF tem atuado durante a pandemia de COVID-19?
Bom, com relação à pandemia: atuamos em locais que nunca antes havíamos atuado, como a Bélgica e os Estados Unidos. Além disso, tivemos bastante dificuldade com a locomoção de equipes internacionais, principalmente no início da pandemia, fazendo com que repensássemos formas de trabalho com as equipes locais disponíveis. Aqui, no Brasil, tivemos uma demanda muito grande, tendo projetos em vários estados e de diferentes formas, desde a atuação em comunidades afastadas até em CTIs em Manaus.
Esse ano, o MSF completa 50 anos desde que começou seus trabalhos e, desses, está há 30 anos no Brasil. Qual a importância dessa organização para o Brasil e para o mundo?
Bom, então, são 50 anos de MSF no mundo, trabalhando com ajuda médico-humanitária, buscando acesso a medicamentos através do access campaign e falando sobre situações humanitárias que a maioria do mundo preferia fechar os olhos. São 30 anos de MSF no Brasil, com atuações em várias regiões do país, inclusive de forma muito importante nesse último ano devido à pandemia de COVID-19. Nós, do MSF, nos orgulhamos muito de sermos uma instituição médico-humanitária independente, neutra e imparcial, que leva cuidados em saúde a quem mais precisa, independente de cor, credo, etnia, orientação sexual ou qualquer outra característica dessa pessoa.
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