Tratamentos com antivirais - Por que é tão difícil desenvolver remédios contra vírus?
- Jornal A Sístole
- 15 de set. de 2022
- 5 min de leitura

Por Wallace Soares
Após o surgimento da COVID-19, uma infecção respiratória causada pelo coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2), a doença rapidamente adquiriu o status de pandemia em virtude da existência de um grande número de pessoas suscetíveis à infecção, bem como de condições facilitadoras para a propagação do vírus, situação que prossegue até os dias atuais.
Em vista disso, a busca por um tratamento eficaz se tornou urgente e a abordagem mais rápida encontrada pela comunidade científica foi testar medicamentos que já existiam para outras doenças, na esperança de que alguns deles funcionassem contra o novo coronavírus. Segundo o professor de imunologia da USP, José Alexandre Barbuto, é comum que se faça o redirecionamento de drogas com o surgimento de uma nova doença, ou seja, se um determinado fármaco funciona para um agente etiológico similar, então, por analogia, pode ser que também funcione para tratar a doença em investigação.
Essa estratégia já havia sido empregada em epidemias anteriores, quando testaram, sem sucesso, a cloroquina para o tratamento da Zika ou a ivermectina para o combate do vírus causador da Chikungunya. Semelhantemente, os resultados dos ensaios clínicos para a COVID-19 foram insatisfatórios, pois apesar dessas drogas exibirem alguns resultados promissores em laboratório, quando testadas em seres humanos não surtiram efeito, ou evidenciaram que as doses necessárias para uma ação terapêutica seriam tóxicas para a utilização humana. Apesar disso, alguns meses depois, finalmente surgiram os primeiros fármacos antivirais que realmente funcionam contra o coronavírus, a exemplo do molnupiravir e do paxlovid. Diante desse cenário e de outras situações similares, por que, afinal, é tão difícil produzir remédios contra vírus?
Ao contrário das doenças bacterianas, as viroses geralmente são mais complexas de serem tratadas porque é muito difícil encontrar fármacos que ajam de maneira específica para o combate desses agentes. As bactérias possuem estruturas próprias que não são expressas por células humanas, como a parede celular de peptidoglicano, por isso drogas que perturbam ou destroem esse componente, como algumas classes de antibióticos, podem funcionar contra várias delas causando poucos efeitos adversos no nosso organismo. Os vírus, por outro lado, são parasitas intracelulares obrigatórios que dependem completamente das células do hospedeiro para fabricarem novas cópias e, por isso, enquanto as bactérias possuem um alvo fácil no qual os fármacos podem intervir, é difícil atacar os vírus sem que façamos mal para nossas próprias células.
Além disso, os vírus são extremamente diversos e dificilmente têm moléculas em comum uns com os outros. Dessa forma, mesmo quando um alvo potencial é identificado, os tratamentos são bastante específicos e a droga nem sempre é considerada segura. É justamente por causa dessa dificuldade em encontrar alvos efetivos que a ciência demorou mais de 50 anos após a descoberta dos antibióticos para desenvolver os primeiros antivirais.
À vista disso, nós dependemos mais das vacinas para combater viroses do que de tratamentos específicos que impedem a infecção viral ou inibem a atividade de enzimas essenciais para os vírus. Aliás, é por isso que, muitas vezes, os remédios prescritos pelos médicos contra viroses, como a gripe, são drogas para controlar os sintomas da doença - como atenuar a febre - e não remédios para combater o vírus influenza (causador da gripe), o qual é naturalmente suprimido pelas células de defesa em indivíduos saudáveis após alguns dias.
Se os antivirais são de difícil desenvolvimento, como foram concebidos?
Historicamente, em 1957, um dos primeiros tratamentos desenvolvidos contra vírus foram os ``interferons``, proteínas que o nosso próprio corpo produz e que interferem na multiplicação de alguns tipos de vírus. Embora promissores contra certas infecções, como as hepatites B e C, esses procedimentos provocavam fortes efeitos adversos e nem todos os pacientes apresentavam cura e, por isso, foramdescontinuados.
Posteriormente, os primeiros antivirais de ação direta surgiram a partir de fármacos para o tratamento do câncer. Como os tumores são constituídos por células que se multiplicam de maneira descontrolada, estão constantemente produzindo DNA, logo, uma estratégia de intervenção adotada foram as drogas antitumorais que imitam as moléculas que constituem o DNA, como os nucleotídeos, mas que não funcionam efetivamente para sintetizar DNA. Assim, ao passo que essas substâncias são ignoradas pelas células saudáveis, podem ser incorporadas pelas células tumorais, impedindo-as de continuar a se multiplicar. Analogamente, esse é o mecanismo de ação do aciclovir, uma droga antiviral contra o vírus varicela-zóster (causador da Herpes), a qual imita a guanosina, precursora da base nitrogenada guanina que integra o DNA (letra G). Assim, quando o aciclovir é processado e incorporado no DNA viral, mas ignorado pelas células saudáveis, impede que outras moléculas do vírus sejam produzidas, cessando a progressão da doença.
Na década de 1980, com a descoberta do vírus HIV, causador da AIDS – doença caracterizada pela queda acentuada no número de linfócitos TCD4+ – uma nova fronteira científica precisou ser transposta para o desenvolvimento de antivirais. Nesse sentido, como o HIV provoca uma infecção crônica permanente e continua ativo escapando da resposta imune por muitos anos, quando a AIDS emergiu foi considerada letal porque, ao causar imunossupressão, propiciava o aparecimento de infecções oportunistas. Apesar disso, em 1985 foi desenvolvida a azidotimidina ou AZT, um fármaco com mecanismo de ação semelhante ao do aciclovir que age para ``sabotar`` a formação do genoma viral; embora efetivo a curto prazo, com o tempo o vírus da imunodeficiência humana se mostrou capaz de criar resistência ao tratamento, por isso novos medicamentos foram desenvolvidos e os coquetéis antiaidsformulados.
Atualmente, existem mais de 20 drogas diferentes para o combate do HIV, as quais são divididas em 8 classes: inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa (INTRs), inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleotídeo (nRTI), inibidores não nucleosídeos da transcriptase reversa (INNTRs), inibidores da protease (PI), inibidores de entrada (EI), inibidores pós-ligação, inibidores da integrase e inibidores de fixação. Ainda que possuam diferentes mecanismos de ação, todos esses medicamentos impedem a replicação viral de alguma forma e podem amplificar os efeitos desejados dependendo de como são combinados.
Uma revolução científica
Em suma, os antivirais ainda não são uma solução definitiva e de baixo custo como as vacinas, mas em alguns casos podem ser uma das únicas proteções para imunocomprometidos ou doenças virais que ainda não possuem imunizantes, como é o caso do HIV e do vírus da hepatite C. Em todo caso, esses medicamentos representam um enorme avanço da ciência moderna que, apesar das dificuldades técnicas, continua pesquisando e desenvolvendo drogas cada vez mais eficazes e com menos efeitos adversos em prol da preservação da vida humana.
Referências bibliográficas:
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● G1 - Fantástico. Entenda por que a produção de medicamentos contra os vírus exige mais do que a contra as bactérias. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/13/entenda-por-que-a-producao-de-medicamentos-contra-os-virus-exige-mais-do-que-a-contra-as-bacterias.ghtml>. Acesso em: 26 ago. 2022.
● ROCHA, L. CNN Brasil - Medicamentos antivirais surgem como esperança para mudar rumo da pandemia. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/saude/medicamentos-antivirais-surgem-como-esperanca-para-mudar-rumo-da-pandemia/>. Acesso em: 25 ago. 2022.
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