Relatos Pessoais: Quando entrar na Universidade não é garantia de permanência
- Jornal A Sístole
- 4 de out. de 2022
- 11 min de leitura

Por Gabriella Berto, Karine Corrêa e Wellyngton Luiz
Cursar Medicina em uma Universidade Pública é um sonho para muitos. Com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído em 2007 e, também, com a Política de Ações Afirmativas, houve a ampliação do número de vagas no ensino superior, tornando esse sonho menos impossível. Apesar de tais avanços, ser aprovado em uma Universidade Pública não garante a permanência. A graduação em Medicina, por exemplo, possui carga horária integral, o que impossibilita conciliar os estudos com o trabalho, resultando, assim, em um curso que permanece elitizado.
Estratégias de auxílio permanência tornam-se, então, imprescindíveis. Mais do que garantir a entrada na Universidade, é preciso assegurar que os estudantes tenham condições de se manter no curso. O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), executado no âmbito do Ministério da Educação, tem como finalidade ampliar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dispõe de algumas formas de auxílio, como alimentação, transporte, educação infantil, material didático, moradia e permanência. Tais auxílios são regulados pela Pró-Reitoria de Políticas Estudantis (PR7), com processos seletivos periódicos que envolvem uma série de documentações que comprovam a necessidade do aluno. Para ser contemplado com o auxílio permanência, por exemplo, o discente precisa ter ingressado pela modalidade de renda da Política de Ações Afirmativas, além de comprovar que essa seja de até 0,5 salário mínimo per capita.
Apesar da implementação, na prática, observa-se dificuldade no acesso aos auxílios. A própria PR7 evidencia que a demanda é superior ao número de vagas. Assim, compreendendo a importância do tema, o Jornal “A Sístole” buscou estudantes da UFRJ-Campus Macaé para dialogar sobre a permanência universitária.
Anônimo:
“ (..) fui aprovada na UEMG, em Passos, fiz metade do semestre e consegui auxílio lá. No meio do ano, eu coloquei a minha nota para a UFRJ de Macaé e recebi a notícia que passei; eu sabia que a faculdade tinha auxílios e que pelo menos o auxílio permanência, que é R$ 490,00, eu teria direito, porque entrei com renda de meio salário per capita. Esse, inclusive, foi um fator importante na hora de escolher a UFRJ. Como não tenho vínculo financeiro com a minha família, vim contando com esse auxílio. Aqui na UFRJ, me deparei com uma carga horária extensa, o que dificultou o meu planejamento de trabalhar ao longo da graduação - dou aulas particulares para crianças e adolescentes, o que não é compatível com o horário noturno. Depois, quando saiu o resultado do edital do auxílio permanência, vi que não havia sido aprovada. O porquê? Sem motivos detalhados, apenas não fui aprovada. Todo edital é isso, tento a inscrição para descobrir o motivo para minha solicitação ser indeferida. Porque eu entrei pela cota, mandei a documentação de renda, todo mundo sabe que eu entrei por essa cota, todo mundo viu o valor da minha renda quando entrei e eu não tenho direito à
bolsa. Eu fico confusa e perdida.
Ninguém responde, ‘se está no edital, é isso’.E a minha documentação não vai mudar de um edital para outro, porque eu continuo na mesma situação, eu continuo fazendo a mesma coisa para pagar as contas: dando aula.
Hoje eu não recebo nenhum auxílio da UFRJ, entretanto consegui entrar em um Grupo de Ajuda, que é coordenado por docentes e médicos que assistem os alunos em situação de maior vulnerabilidade.
Além disso, dá medo. Como vai ser? Como eu vou para faculdade esse semestre? Eu não sei, vou vivendo na medida em que as coisas vão acontecendo. Eu nunca sei quanto tempo vou ficar aqui, isso vai acontecendo e no final eu já estou indo para o 3° período sem garantia nenhuma. Essa instabilidade atrapalha o meu rendimento; fora que estou sempre no corre para tentar trabalhar, ficar aqui, permanecer aqui. E o pior é saber que eu realmente tenho direito e mesmo assim não consegui o auxílio. Cadê o meu direito? A minha perspectiva, de verdade, é que como estudantes consigamos fazer uma movimentação para, assim, assegurarmos o nosso direito.”
Anônimo:
“Eu sou do interior do Maranhão, onde eu morava até passar para o Prouni e SISU, no Prouni passei para Campina Grande - PB e fui aproveitar a experiência, mesmo sabendo que estava esperando a oficialização dos papéis pela UFRJ. Lá eu ganhava bolsa para estudar e morava perto da faculdade. O primeiro semestre foi online, o que ajudou muito em relação aos gastos porque pude voltar para meu estado. Em Abril, eu mudei para Macaé e foi complicado porque fui para longe da minha família, mas eu amei minha turma e isso ajudou um pouco na mudança. A princípio, eu também gostei muito da faculdade e amei a cidade; passei por alguns perrengues e me perguntava se foi a decisão certa, porque mudar para Macaé foi sair da minha zona de conforto, o que não foi fácil, então passei por algumas dificuldades que, inclusive, não se limitaram à questão financeira. Quando ainda estava no Maranhão, eu tentei as bolsas da PR7 e todos os documentos que enviei foram oficializados.
Pela UFRJ, eu não consegui nenhum auxílio. Um dos critérios para conseguir a bolsa permanência é justamente estar longe de casa, mas eu estou a mais de 3.000 km de lá e não consegui esse auxílio. É complicado, pois em outro lugar [Campina Grande] eu conseguia só por ser estudante. E tem gente, assim como eu, do outro lado do Brasil, do Norte que não consegue esse auxílio e não sei o motivo para não conseguirmos. Está no edital que temos direito e a bolsa do auxílio ajudaria muito a pagar o aluguel e outras despesas
Ainda está dando para lidar, mas não está tranquilo. Minha mãe está me ajudando, mas não vai conseguir me assistir para sempre, então estou sobrevivendo. Já procurei emprego em Macaé, mas não consegui achar um que dê para conciliar com o curso. A faculdade tem a obrigação de ajudar os alunos e eu não me sinto ajudada, de forma alguma. Eu tenho medo de chegar uma época com a qual eu não consiga lidar, daí qual será o meu caminho?! Tenho que trancar a faculdade, deixar de estudar e voltar para casa?! É complicado.
O começo foi bem difícil porque tive medo de ter tomado a decisão errada. Em Campina Grande, eu tinha tudo que eu queria, eu não passava tanto perrengue. Influencia muito na saúde mental e eu fico pensando muito na minha família, porque se acontecer algo, eu não vou conseguir me manter aqui. Eu estou fazendo faculdade e não sei se vou conseguir terminar.
O desgaste de fazer o processo seletivo e não saber o motivo pelo qual não foi aprovado é muito grande, e não vão falar o motivo. Eu percebi que para minha saúde mental, seria melhor desistir da bolsa e não sei se vou tentar o próximo edital pois, como eu disse, é muito desgastante.
É injusto para quem não consegue e não recebe uma justificativa adequada. Antes de entrar na faculdade, achei que receberia. Eu acredito que tem um potencial muito grande de ajudar os estudantes, mas não funciona e fica muito na teoria. Quando eu entrei, eu percebi que não funcionava.”
Anônimo:
“Eu saí de Parintins, no interior de Manaus, logo após ser aprovado, e tive que vir porque logo as aulas começariam. E lá [em Parintins] as estruturas de acesso às aulas online eram ruins, então, precisei sair da minha cidade e vir para Macaé. Tive ajuda da minha família e da comunidade parintinense, saí de lá com bastante apoio. Eu recebo um auxílio que é o de permanência, o que me ajuda muito, mas também busquei outros auxílios para me assistir, pois temos que considerar que o custo de vida da cidade é alto.
O auxílio permanência me ajuda com o mínimo. Se considerarmos uma pessoa de baixa renda, temos que pensar na alimentação, na moradia e no transporte. Nesse sentido, o auxílio permanência me ajuda com o básico ou nem isso, se levarmos em conta o custo de vida da cidade. Isso afeta a saúde mental porque, se você se preocupar muito com essas condições básicas, fica difícil se concentrar no curso, então eu digo que gera uma instabilidade. A ajuda dos meus parentes não é constante e depende muito da condição financeira deles, é uma ajuda simples. Tem meses que alguns não conseguem me ajudar e isso afeta minha estabilidade aqui.
A universidade, eu penso, poderia ajudar as pessoas de condição financeira mais baixa, principalmente se lembrarmos que é um curso elitizado. Eu enviei todos os documentos que fui aprovado no auxílio permanência e não fui aprovado nos outros; eles disseram que os documentos não estavam de acordo e isso eu não entendo, ainda tentei entrar com recurso, porém não deu em nada. Eu demorei muito tempo para organizar todos os documentos que seriam enviados devido a sua grande quantidade, inclusive mandei documentos que não estavam no edital para reforçar minha situação; mesmo assim, não fui aprovado. Seria melhor se fizessem um rastreamento das pessoas que são de outros estados, para estabelecer prioridades. A gama de documentos que eles pedem, eu acredito, que não seja tão necessários, outros são e percebo como essenciais. Seria importante uma justificativa mais detalhada, além daquelas que a PR7 dá de “indeferido” e “não aprovado”.
Anônimo:
“O meu trajeto até aqui foi, inicialmente, de muita luta. Eu vim de uma família muito pobre e considero um privilégio ter estudado em rede particular com bolsa. Ao chegar em Macaé, tive bastantes dificuldades visto que a cidade é muito cara, principalmente em relação a aluguel e mercado. Inicialmente, eu fui morar em uma casa e dividia com dois colegas de turma, mas como as contas eram muito caras, eu apenas conseguia me manter com o básico. Quando abriu a inscrição da Casa do Estudante, consegui ser contemplado com uma vaga e foi um grande passo ter conseguido acessar esse auxílio, pois todas as despesas se foram e com isso consegui me equilibrar mais com os gastos que tinha. Como sou aluno da Casa do Estudante, tive maior facilidade para adquirir diversas outras bolsas na faculdade, como transporte e material didático e auxílio emergencial COVID-19. Eu consegui os auxílios no final do 2° período, porém alguns vieram depois da pandemia, como
o auxílio digital.
Sem esses auxílios seria inviável permanecer na cidade devido ao custo de vida muito caro. Meus pais não têm só eu de filho, têm meus irmãos para ajudar . Então, esses auxílios me ajudam a permanecer na faculdade. Outra forma de auxílio que recebo é o Grupo de Ajuda; fui um dos primeiros a ser assistido por esse grupo, que desempenhou um papel muito importante na minha permanência.
Os auxílios me ajudam bastante, mas para umas coisas acabam não suprindo. Por exemplo, o auxílio material didático não cobre todos os materiais que a gente precisa, acaba não sendo eficiente, como estetoscópio, materiais cirúrgicos, livros que não têm edição atualizada na biblioteca. Eu noto que, realmente, algumas pessoas que não têm todos os auxílios que tenho, possuem uma maior dificuldade quanto à permanência na faculdade.
Eu entrei em 2017.2 e os auxílios foram em 2018.2, se não me engano, que foi junto com a casa do estudante, você entrava lá já com as bolsas, foi a partir daí que consegui os outros auxílios.
Como eu entrei por ampla concorrência, fiquei assustado com tanta documentação, a documentação é a básica para você entrar. São muitos critérios e requisitos, tive muita dificuldade no começo porque como meus pais moram longe, eles tiveram que ir para cidades vizinhas para conseguir toda a documentação. Então meus pais se comprometeram com a minha causa, mesmo tendo que ajudar meus irmãos. Outra coisa são os prazos demorados para os resultados, quem precisa desses auxílios sabe que o tempo é um fator determinante para sua condição. Eu conheci pessoas que foram indeferidas no processo - por motivos que não cabem aqui porque não me dizem respeito -, me pareceu injusto e fiquei triste, pois não imaginava que algo assim acontecesse.
Eu acho esse processo da UFRJ muito criterioso, eu tiro por outras universidades que passei, o edital da UFRJ esmiúça toda a vida do aluno e, às vezes, um detalhezinho faz toda a diferença. É sempre ficar muito atento aos critérios do edital, porque um detalhezinho desclassifica uma pessoa.”
Anônimo:
"Participei do Programa Bolsa Permanência (PBP), ofertado pelo Ministério da Educação e pela UFRJ, nos seis primeiros meses da graduação; bastava comprovar a vulnerabilidade socioeconômica e você recebia o auxílio, porém a bolsa não era cumulativa com outras oferecidas, como as de Iniciação Científica e de monitoria, diferente da assistência prestada atualmente pela PR7. Essa bolsa me ajudou muito, contudo, quando o Michel Temer assumiu o governo, ela foi extinta. Os já beneficiados continuaram a receber até o fim da graduação, então eu não fui prejudicado, mas vários amigos que tentaram a bolsa na época em que o edital terminou ficaram com grandes problemas e, assim, não conseguiram assistência da UFRJ. Um grande problema também é que na medicina temos bastante reingresso, pessoas que já concluíram uma graduação e entram na medicina ainda em situação de vulnerabilidade, por exemplo, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, dentistas, ou seja, pessoas que vêm da área da saúde que reingressam e não podem trabalhar, mas a UFRJ os enxergam como se tivessem capacidade para se sustentar e automaticamente não têm direito a um auxílio. Então essas pessoas sofrem muito porque não podem trabalhar e não têm direito a uma bolsa, desse modo, acabam ficando comprometidas, afinal, como irão se manter? São pessoas em vulnerabilidade socioeconômica.
Na minha época, a minha maior dificuldade era conseguir o contracheque do meu pai dos
últimos três meses e imposto de renda. Meu pai sempre foi garçom e minha mãe, cuidadora de idosos, então eu tinha que provar. Minha mãe recebia dinheiro em mãos e ela tinha que declarar isso escrito no papel e levar ao cartório para registrar e formalizar, mas eles não custeiam dinheiro de cartório. Então você precisa autenticar aquela cópia, precisa comprovar que aquele documento é verdadeiro, custear 200 cópias dos documentos (enfatização). Eu tive um colega que veio de um período antes do meu, cotista socioeconômico e escola pública, cujo algum documento, que não sabia qual, faltou na matrícula. Sabemos que os documentos para matrícula e para auxílios são muito semelhantes, um desses documentos faltou (acho que um contracheque do pai de um mês específico) e durante um mês de graduação a UFRJ entrou em contato com ele dizendo que a matrícula dele estava sendo questionada por falta de um documento. Então assim, a gente fica muito prejudicado e vulnerável nessa condição, que é o caso dessa exigência, dessa burocracia.
A gente não sabe qual documento está em falta, o porquê você foi indeferido; eu até entendo que para a PR7 são muitos documentos para serem analisados, então para eles é muito fácil indeferir, mas para a gente (alunos) é extremamente prejudicial, principalmente quando você depende muito de uma bolsa, inclusive para o nosso curso que é de período integral em que você não tem como trabalhar, a não ser na própria universidade com a iniciação científica e monitoria que sejam custeadas, porque a maioria das monitorias e iniciações científicas não são custeadas e não têm bolsas para todo mundo.
A PBP era uma bolsa de R$ 400,00 reais, então durante 6 anos eu tive o privilégio de morar em uma casa, com uma família que me cobrava R$ 250,00 de aluguel, incluindo tudo, o que eu sei que não é uma realidade de Macaé - essa família me adotou. O auxílio me ajudava a pagar o aluguel e eu completava com o dinheiro que meus pais me davam para o transporte; em relação à alimentação, eu almoçava junto com meus amigos no restaurante comunitário em Macaé.
O Grupo de Ajuda da UFRJ, que foi criado pelos professores, quando eu estava no 7° período, ajudava com quentinhas e muitas coisas: em dois congressos de Oncologia consegui ajuda financeira ao apresentar um trabalho e as médicas que eram endocrinologistas do Grupo de Ajuda me ajudavam com os remédios para o hipotireoidismo. Acredito que o processo de seleção seja injusto? Sim. É só a gente ver a quantidade de colegas que não passam nos editais. Eu tinha dois colegas que se viravam, vendiam cafezinhos, ou davam outro jeito. Eu vejo que para melhorar é necessário aumentar o número de bolsas; se não conseguirem com o orçamento da universidade, então aumentar o número de bolsas para as iniciações científicas e monitorias com bolsas. Mas era assim, são duas bolsas para os monitores, então pode ter 7 monitores e 2 bolsistas e é um trabalho que todos fazem juntos. Talvez a universidade se beneficie, porque o aluno aprende a didática e recebe bolsa para isso.”
Referências:
1. GANAM, ELIANA ALMEIDA SOARES e PINEZI, ANA KEILA MOSCA. DESAFIOS DA PERMANÊNCIA ESTUDANTIL UNIVERSITÁRIA: UM ESTUDO SOBRE A TRAJETÓRIA DE ESTUDANTES ATENDIDOS POR PROGRAMAS DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL. Educação em Revista [online]. 2021, v. 37, e228757. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-4698228757>. Epub 18 Ago 2021. ISSN 1982-6621. https://doi.org/10.1590/0102-4698228757.
2. BRASIL. DECRETO No 7.234, DE 19 DE JULHO DE 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES. Brasília, 19 de julho de 2010. 3. Pró-Reitoria de Políticas Estudantis - PR7. Disponível em: https://xn--polticasestudantis-jyb.ufrj.br/
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