RELATOS PESSOAIS: OSSOS DE VIDRO
- Jornal A Sístole
- 30 de mar. de 2021
- 10 min de leitura

POR THAIS PESSANHA
Mediado por Francília Garcia

OSTEOGÊNESE IMPERFEITA (OI): A Osteogênese Imperfeita (OI) é uma doença rara e sem cura, popularmente, conhecida como a doença dos “ossos de vidro” ou doença dos “ossos de cristal”. Esta corresponde a um grupo de alterações, na sua maioria, autossômicas dominantes, causadas por inúmeras mutações em um dos dois genes que codificam as cadeias alfa – COL1A1 e COL1A2 – do colágeno Tipo 1. Ela é caracterizada por grande fragilidade óssea e osteopenia, cuja principal consequência é a incapacidade física. No caso da OI, as manifestações clínicas incluem fraturas recorrentes com deformidades secundárias, frouxidão ligamentar, instabilidade ou hipermobilidade articular, escleras azuladas, dentinogênese imperfeita, dor óssea e perda auditiva precoce. Os primeiros estudos sobre a doença apontam para 1788 (Ekman), mas no Museu Britânico em Londres, existe um sarcófago e os ossos de uma múmia egípcia de uma criança com traços de Osteogênese Imperfeita (OI) que viveu entre 945-716 A.C., no antigo Egito. Apenas em 1979, um grupo liderado por Sillence propôs uma classificação em quatro tipos (I – IV) diante da heterogeneidade clínica marcante da doença. Posteriormente, mais quatro tipos (V – VIII) foram descritos e, embora esta divisão em oito tipos clínicos seja a utilizada, ainda existem inconsistências quanto às características e ao prognóstico de cada tipo. Por isso, a classificação de Sillence continua sendo a mais popular. *
* trechos do livro “Dias de Sol”, de Thais Pessanha.
DEPOIMENTO NA ÍNTEGRA:
Eu tenho o grau mais elevado de uma doença genética rara e sem cura, a qual alguém com essa doença consegue sobreviver: a Osteogênese Imperfeita Congênita (OI). E eu tenho sorte.
Estima-se que a cada 18.000 a 20.000 nascimentos, 1 criança nasça com a doença. Se hoje em dia, a medicina ainda está engatinhando em busca da cura e tratamentos paliativos para a OI, imagina o que a medicina sabia sobre a minha doença em 1982, ano em que nasci. NADA! Eu nasci com os 2 braços, as 2 pernas e várias costelas fraturadas na hora do parto. Isso após uma gravidez tranquila, sem nenhuma intercorrência e pré-natal em dia. A sorte foi mamãe ter escolhido fazer cesárea para já ligar as trompas. Caso tivesse sido parto normal, teria fraturado também o crânio e aí não teria jeito mesmo. Além disso, exames de imagem apontavam calo ósseo de fraturas intrauterinas. Isso mesmo, eu tive fraturas e consolidações ósseas ainda no útero.
O principal paper sobre a doença data de 1979, ou seja, apenas 3 anos antes da minha estreia neste mundo. E por isso o recado dos médicos para os meus pais, resumidamente foi: “é uma doença pouco conhecida, não sabemos o que fazer, leva pra casa e espera, pois, irá morrer antes de completar 1 ano de vida. Fim.” E depois de muito peregrinar pelos principais setores de genética dos principais hospitais universitários do Rio de Janeiro, e da filha muito ser analisada e pesquisada em cima de bancadas frias por vários colegiados médicos (como se um ET tivesse pousado na Terra), eles resolveram voltar pra casa com o seu “farelinho de ossos” de esclerótica azulada (característica da doença), cuidadosamente em suas mãos e fazer o que lhes era possível: cuidar, dar amor e ter fé.
38 anos depois, cerca de 300 fraturas estimadas, cifose, escoliose, lordose, uma cirurgia na coluna pra colocação de haste óssea (como presente de aniversário de 12 anos), hipotonia muscular, dentinogênese imperfeita, inúmeras deformações ósseas em membros superiores, inferiores e na caixa torácica, o que levou a um quadro de DPOC (já com histórico de parada respiratória aos 17 anos e incontáveis internações por crise de asma e pneumonia). Eu, ainda assim, digo: tenho sorte.
A minha realidade de vida, apesar de ter sido dura, não representa a realidade de vida das pessoas que nascem com OI no Brasil.
Após o parto, meus pais não foram acusados de maus tratos, não foram presos ou processados, e também não perderam a minha guarda, o que ainda acontece com muitas famílias por puro desconhecimento médico e diagnóstico inadequado. Pelo contrário, os médicos do parto (e os médicos amigos desses médicos) não mediram esforços em nos encaminhar para os principais hospitais que pudessem dar um melhor diagnóstico (com 3 dias de vida já peguei estrada). E após o diagnóstico, mesmo sem saber o que fazer, continuaram ao nosso lado se predispondo a aprender junto conosco sobre a doença, dando o seu melhor, a hora que fosse (e foram muitas madrugadas e finais de semana acionados numa época em que não existia celular, internet e uber). Eu tenho sorte.
A minha família, mesmo sendo simples, diante de um prognóstico duro e frio, não me rejeitou. Nem pais, nem avós, nem tios, nem primos. Todos se uniram em prol da causa, ajudando como podiam, me enchendo de amor e cuidados. Mas sem favoritismos. As crianças da família (irmão e primos) cresceram me tratando de igual pra igual. E os adultos não me livraram nem dos castigos por desobediência (me livraram apenas das palmadas). E isso também não representa a maioria das famílias, nas quais diante de tantas dúvidas, muitas vezes o progenitor vai embora e o restante da família vira as costas. Eu tenho sorte.
Apesar de não ter nascido em berço esplêndido, meus pais trabalhavam e tiveram condições de me colocar em boas escolas particulares, que cientes da minha fragilidade óssea, tinham todo o cuidado para que eu sempre participasse de tudo (inclusive excursões escolares) sem me fraturar, e adaptavam a escola como era possível. Todos os alunos da escola sabiam da minha doença, sabiam dos cuidados que deviam ter e NUNCA nenhuma criança me quebrou. Eu me quebrei inúmeras vezes na escola, mas por peraltices minhas mesmas. Eu nunca sofri bullying na escola. Eu nunca fui excluída de nenhuma brincadeira pelas crianças. Naquela época, ninguém falava em inclusão social. E tudo acontecia de uma forma muito natural. Hoje em dia muito se fala, e o que observamos é uma segregação social, querendo empacotar todo mundo em nichos. Definitivamente, eu não represento a maioria das crianças com OI. Eu tenho sorte.
Meus pais trabalhavam e deixar de trabalhar para cuidar da filha deficiente não era uma opção no lar. Precisavam do emprego e do plano de saúde possibilitado por ele, mais do que nunca. Eram duas crianças em casa, sendo uma com alta demanda médica. E uma família sem histórico de posses. Nunca precisei esperar e nem madrugar em filas do SUS por atendimento médico. As fraturas eram prontamente engessadas, e mesmo quando faltava calha, atadura ou gesso em algum hospital, eles tinham condições de correr na farmácia e comprar. Por isso ressalto: ter um plano de saúde, no Brasil, pra quem precisa fazer fisioterapias, diariamente, e até cirurgia faz diferença sim. Eu tenho sorte.
A nossa casa, aos poucos, foi sendo ajustada para as minhas necessidades. Não se falava em obras e adaptações de uma casa para deficiente naquela época, e muito menos em quartos montessorianos. Costumo dizer que minha mãe foi a precursora da Maria Montessori. Ela ajustou a casa para que tudo ficasse ao meu alcance, me dando maior autonomia possível (com segurança), isso desde o interruptor de luz até a pia do banheiro, cama, móveis, micro-ondas, incluindo vassoura e pano de chão pra limpar a casa. A maioria das famílias não tem essa orientação nem nos dias de hoje (que dirá na década de 80), o que acaba por gerar uma dependência excessiva no deficiente e, em alguns casos, até mais enfraquecimento muscular e perda de movimento. Eu tenho sorte.
38 anos depois, um curso técnico, um bacharelado, dois MBAs, uma carreira promissora de 17 anos numa das maiores empresas de petróleo do país, uma certificação em inglês, uma certificação Microsoft, muitos cursos paralelos, empreendedora, ex vice-presidente de ONG por dois mandatos, skatista, remadora, condutora da Tocha Olímpica e da Tocha Paralímpica nas Olimpíadas Rio 2016, e amante de viagens. Sim, eu tenho sorte.
Eu não me resumo a OI. Mas ela é parte importante de quem eu sou. A OI moldou não apenas o meu caráter, mas delineou também os rumos da minha família. O que eu sou hoje é fruto disso. É fruto de uma família que resolveu olhar pra um prognóstico médico e encarar apenas como um diagnóstico. Tratando a doença com toda a seriedade, cuidados e atenção demandadas, mas principalmente tratando com NATURALIDADE.
E foi com esse olhar de naturalidade para doença que eu cresci. Ciente das minhas limitações, ciente dos cuidados que preciso ter para o resto da vida (e com a idade essa lista só aumenta), só que também muito sabedora de que isso não me torna nem melhor e nem pior do que ninguém nesse mundo.
Cresci sob três principais valores: 1. Nunca faça com os outros aquilo que você não gostaria que fizessem com você; 2. Aprenda a se virar sozinha e a se defender, pois sua família nem sempre estará ao seu lado (fisicamente); 3. Você é normal, apenas tem uma doença. Por isso, nunca permita que te tratem diferente.
A forma como o meu caráter e a minha visão de mundo foram moldados, fazendo com que eu não tivesse um olhar de vítima sobre mim mesma, fizeram com que eu nunca permitisse que me tratassem dessa forma. Não aceito o rótulo de pobre coitada, assim como não aceito o rótulo de super-heroína. Sou apenas uma sobrevivente de uma doença rara num país onde o sistema de saúde público é sucateado e sem incentivos a pesquisas (infelizmente).
Tem gente que é cardiopata, tem gente que tem diabetes, tem gente que tem joanete. Eu tenho uma doença rara e sem cura que acaba provocando uma série de outras doenças. Por isso, eu digo: ter OI não é pra qualquer um. É pra quem aguenta.
Os cuidados com minha saúde sempre foram minha prioridade (e graças a isso cheguei tão longe, contra todos os prognósticos), mas não me limitando apenas a isso. Assim como estudar e prover o meu sustento tiveram também grande importância na minha vida (como na vida da maioria das pessoas que não nasce em berço de ouro), curtir a vida também sempre esteve em meu radar.
Sou amante de livros, mas nem por isso deixo de gostar de esportes. Não posso dizer que as minhas duas escolhas de esporte tenham deixado meus médicos tranquilos, mas eles resolveram confiar em mim, afinal, quem menos quer se quebrar sou eu. E com cuidado, nunca tivemos nenhuma intercorrência por causa do skate ou do caiaque.
Da mesma forma, amo meter a mochila nas costas (da cadeira de rodas) e sair por esse Brasilzão. A OI nunca foi uma limitadora da escolha dos meus destinos. Se o local não é acessível e adaptado a um cadeirante, eles que lutem pra aguentar as minhas críticas e reclamações e dar um jeito de me atender, afinal “se o local não é acessível a todos, a deficiência está nele, não em mim”. Eu vou de qualquer forma.
Ter OI, definitivamente, não é fácil. É um misto de “orai e vigiai” com “sempre alerta” (dos escoteiros). É matar um leão por dia. É se tornar sua própria advogada e ter que lutar pelos seus direitos dia após dia. E, principalmente, se defender no tribunal da vida contra todos os preconceituosos que insistem em te julgar, em dizer o que você pode e o que você não pode fazer e ser, como se a OI fosse uma simples matemática e se manifestasse sempre de forma igual em todos os pacientes.
Tolos. Não sabem nada de medicina, são péssimos em matemática, com nota zero em ciências sociais.
Quem vê as risadas, as gargalhadas e as brincadeiras não vê o corre-corre pro hospital que foi uma constante na minha vida. Não vê a dor que sinto 24h por dia. Não me lembro de um dia sequer de minha vida que não tenha sentido dor. Apesar disso, não tenho traumas de hospital, não tenho traumas de “homens vestidos de branco”.
38 anos depois, e a cada vez que eu ainda ouço de um médico frases do tipo “eu não atendo pessoas como você” ou escuto de um ortopedista “é melhor você procurar um ortopedista” (não, a frase não está errada), parte de mim fica triste em ver o quanto nossos médicos ainda estão tão despreparados em pleno século XXI. E parte de mim, confesso não com orgulho (mas com a parte humana que me cabe) tem vontade de dar uma voadora nesse profissional que envergonha a classe médica com esse tipo de declaração. E pasmem, são frases que ouço com uma certa frequência. Isso sem contar o quanto é desagradável entrar numa emergência médica hospitalar e o médico te olhar como se você fosse um ET. Com aquele olhar de quem está, mentalmente, tentando descobrir se você é do reino animal, vegetal ou mineral.
Claro que não é agradável ter uma doença rara e sem cura e ainda fazer parte de uma geração que dá mais valor à pesquisa médica para disfunção erétil ou tratamentos estéticos do que pesquisas para doenças raras. Entendemos que ser médico no Brasil é uma prova de amor, mas é preciso que se faça um resgate desse lado humano da medicina. O público de doentes raros não é pequeno e poucos profissionais se interessam pela área. Não somos estatísticas, somos vidas que, pra continuarem sendo vidas, dependem de profissionais de saúde capacitados.
Tudo faz parte de uma escolha de vida. Eu escolhi lidar com uma doença rara e sem cura com naturalidade e aprender a lidar com o preconceito e a crueldade do mundo com quem é fisicamente diferente. Isso tudo da forma mais leve possível.
E o mundo consegue ser muito cruel. Aliviam um pouco a carga quando você é criança. Mas basta se tornar adulto que vêm sem dó nem piedade, como se quisessem cobrar uma dívida do passado com juros e correção monetária. Insistem em afirmar que você tem que provar que é capaz. Ora, se você acha que eu não sou capaz, então a dúvida é sua. Não minha. Logo, não cabe a mim provar nada, assim como também não estou em dívida com ninguém.
Não é fácil. Mas quem foi que disse que lutar por equidade iria ser fácil?
Se eu desejaria ter nascido sem OI? Sinceramente, não. Preferia que o mundo não olhasse pra isso como algo tão surreal. Assim, a minha vida e a vida de todo mundo que tem uma doença rara seria muito mais leve. As crianças que nascem com OI, atualmente, têm a possibilidade de ter mais qualidade de vida (e quem sabe até menos dor) do que eu tive, graças a alguns tratamentos e medicamentos paliativos. Mas ainda estamos muito longe do mínimo razoável no que tange à pesquisa médica, disseminação de informações sobre a patologia e acesso gratuito a tratamentos, medicamentos e cirurgias para os pacientes.
Toda a minha esperança está em vocês, a nova geração de profissionais de saúde, para a construção de um futuro diferente e melhor para todos nós.
A equipe A Sístole agradece à Thaís Pessanha por compartilhar um pouco da sua trajetória conosco!
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