Press Release: VOCÊ SABE O QUE É A CULTURA DO ESTUPRO?
- Jornal A Sístole
- 14 de jan. de 2021
- 5 min de leitura

por Cíntia Reis e Karine Corrêa
A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgados em 2015(1). De acordo com dados publicados pela BBC News Brasil em 2019(2), 37,1% das brasileiras relatam terem sido vítimas de assédio no ano de 2019 e 7,8% relatam terem sofrido assédio físico no transporte público. Esses dados corroboram a existência da cultura do estupro, na qual estamos inseridos. Entendendo a relevância de dialogar sobre o assunto, o Jornal A Sístole abordará o tema nesta publicação. Vale ressaltar que nosso enfoque será na violência sexual contra as mulheres - a maioria das vítimas - embora homens também sofram esse tipo de violência.
A cultura do estupro pode ser definida como “um conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violência sexual”(3). Ela está alicerçada na ideia de que o corpo feminino é público e que os homens têm direito sobre ele, o que é reforçado pelas mídias, pela indústria pornográfica e, por vezes, pela justiça. Isso significa que o machismo e a misoginia, ainda muito presentes na nossa sociedade, contribuem para que essa forma de violência, cujo principal alvo são as mulheres, se perpetue.
Sobre esse tema, é importante compreender alguns fatores que corroboram e fomentam essa forma de pensamento:
Homens e mulheres recebem estímulos diferentes em relação à sexualidade
Um ponto importante é a repressão sexual das mulheres em contraponto ao estímulo à sexualidade masculina. As mulheres, desde a infância, recebem orientações sobre como se comportar, o que inclui desde o estilo de roupas e maquiagens, até os locais que elas não devem frequentar, sendo que todas essas indicações têm como objetivo que elas sejam “respeitáveis” Por outro lado, os homens, desde jovens, são incentivados a iniciar sua vida sexual e a falar abertamente sobre a temática, e que a masculinidade envolve poder. Em uma sociedade heteronormativa essa conta não fecha.
Mulheres são estereotipadas
Tendo em mente a ideia de que o corpo da mulher é público, as expectativas em relação ao gênero feminino são diversas. Enquanto mulheres brancas são esteticamente um objeto de desejo, as mulheres negras são hiperssexualizadas - um ideal com raízes na escravidão. Além disso, há também a opinião de que a mulher “diz não, mas queria dizer sim” e, como consequência, os homens se sentem no direito de desconsiderar o “não” feminino.
Toda essa estereotipação em relação ao gênero feminino se reflete nos dados sobre assédio e estupro no Brasil: um levantamento feito em 2015 pelo site Think Olga(4), criador do movimento #PrimeiroAssédio, apontou que a idade média do primeiro assédio foi de 9,7 anos, enquanto os dados do Ipea (5) apontam que 20.085 casos de estupro foram registrados em 2014 - os números tendem a ser ainda maiores considerando que nem todas as vítimas se sentem confortáveis para fazer a denúncia.
A realidade é que praticamente todas as mulheres, independentemente de sua cor e idade, já sofreram ou sofrerão alguma forma de assédio.
O estupro como algo fora da realidade
Existe uma ideia na sociedade que o estupro é uma coisa distante, restrita a um beco escuro, praticada por um homem doente e que não aconteceria se a vítima tivesse sido mais cautelosa. No entanto, a realidade é outra: uma parcela significativa dos estupros é feita por amigos/conhecidos ou parentes da vítima e, consequentemente, essas violências acontecem em ambientes teoricamente seguros. Além disso, o estuprador não é uma pessoa doente ou vítima da sociedade, pelo contrário, são homens que têm plena consciência e escolhem forçar uma relação sexual. Embora seja mais fácil acreditar que o estupro é algo distante, essa crença apenas favorece a ocorrência das violências.
A culpabilização da vítima
Ainda com base nesse ideal de que o estupro é algo distante, quando ele ocorre, as pessoas tendem a buscar justificativas para tal, sendo as principais associadas a vítima: “como ela estava vestida?”, “aonde ela estava?”, “ah, mas ela já não se dava o respeito”, “andando sozinha ela estava pedindo”, “ela deve ter provocado”, “eu não obriguei ela a vir na minha casa”. Por outro lado, quando a violência ocorre contra crianças - normalmente praticada por alguém próximo - a justificativa mais uma vez envolve a descredibilização da vítima: “ela está interpretando errado”, “ela está inventando”, “ela não sabe o que está falando”.
Um exemplo dessa culpabilização da vítima é o estupro coletivo ocorrido em 2016 no Rio de Janeiro (6), em que uma adolescente foi violentada por 33 homens, os quais divulgaram fotos e vídeos da agressão, e a vítima ainda foi questionada sobre o seu comportamento pelo delegado inicialmente responsável pelo caso. E, mais uma vez, os dados do Ipea demonstram que a sociedade culpa a vítima, pois 58,5% dos brasileiros concordaram total ou parcialmente com a afirmação “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupro”.
Por fim, sabemos que não existem soluções simples para algo tão complexo e arraigado em nossa sociedade. No entanto, podemos iniciar o rompimento com a cultura do estupro ao alterar alguns de nossos comportamentos cotidianos, como: ensinar as crianças a importância da igualdade de gênero; educar os meninos para que respeitem as mulheres; votar em candidatos e candidatas que combatam a cultura do estupro, para que políticas públicas sejam elaboradas; exigir que o Estado cumpra o seu papel de punir todo crime sexual; criar mais delegacias especializadas no atendimento à mulher e qualificar a força policial para esse tipo de atendimento; incentivar a educação sexual nas escolas, para que as crianças saibam procurar ajuda em casos de abuso e sempre que suspeitar que uma criança esteja sofrendo abuso sexual denunciar, ligando para o Disque 100, utilizando o app Direitos Humanos ou o site da ONDH (são gratuitos e funcionam 24 horas por dia, inclusive em feriados e nos finais de semana).
Ainda há muito a ser feito, mas reconhecer a cultura do estupro é o primeiro passo para combater essa violência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) SUDRÉ, Lu. Um estupro a cada 11 minutos: Pesquisas realizadas entre jovens indicam que a cultura do machismo e a violência contra a mulher no Brasil podem ser diminuídas por meio de processos educativos. Entreteses Revista UNIFESP, São Paulo, n. 07, p. 1-63, nov. 2016. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dci/edicao-atual-entreteses/item/2590-um-estupro-a-cada-11-minutos. Acesso em: 21 nov. 2020.
(2) FRANCO, Luiza. Violência contra a mulher: novos dados mostram que ‘não há lugar seguro no Brasil‘. BBC News Brasil, São Paulo, 26 fev. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503. Acesso em: 21 nov. 2020.
(3) SOUSA, Renata Floriano de. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Rev. Estud. Fem., Florianópolis , v. 25, n. 1, p. 9-29, Apr. 2017 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16/11/2020. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p9.
(4) #PRIMEIRO assédio. Think Olga, 2015. Disponível em: <https://thinkolga.com/projetos/primeiroassedio/> Acesso em: 14/11/2020.
(5) CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo Santa Cruz; FERREIRA, Helder. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 1, 2017. Acesso em: 14/11/2020.
(6) ENGEL, Cíntia Liara. As atualizações e a persistência da cultura do estupro no Brasil. 2017. Acesso em: 14/11/2020.
Comments