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O Médico e o Charlatão

  • Foto do escritor: Jornal A Sístole
    Jornal A Sístole
  • 21 de mai. de 2020
  • 3 min de leitura


Autor convidado: João Pedro Kezen Cesário

“A promoção de informações, diagnósticos e tratamentos fraudulentos ou não comprovados com o frequente intuito de lucrar fazem parte do curso da história humana. Esse comportamento ganha realce ao ser praticado por indivíduos com pressuposta qualificação profissional, dificultando ainda mais para o público leigo a distinção entre o que é infundado e o que possui lógica científica plausível.

A médica Isabella Abdalla, por exemplo, anunciou na rede social Instagram a venda de um “soro para imunidade”. Em vídeo em que gestantes recebem o suposto soro, a profissional chegou a exclamar: “ficar imune do corona”. Ela teve seu exercício profissional suspenso em vista de uma interdição cautelar do CREMESP e sua conduta sofre investigação perante o órgão.

Mas a atuação rápida do conselho profissional no caso, coibindo mais efeitos deletérios, está longe de ser a regra. Fraudes médicas, promovendo a venda de produtos, medicamentos, suplementos e a carreira pessoal, são recorrentes no país e transitam com pouca ou nenhuma correção pelas instituições responsáveis.

O advento das redes sociais, ao conceder um meio direto e sem checagem de comunicação, formou uma nova plataforma para praticar o charlatanismo. As narrativas e soluções espetaculosas, diretas e simplistas, angariam fama e dinheiro, ecoando ainda mais com o público em busca ativa por intervenções e soluções. A motivação de tal procura é ampla, desde preocupações estéticas a doenças oncológicas, momento este em que o paciente, num estado de fragilidade, sucumbe à versão que promete resultados, sem qualquer base em evidências.

Denis César Barros Furtado, mais conhecido como "dr. Bumbum" virou manchete no país quando, em julho de 2018, uma paciente morreu após um procedimento estético nos glúteos realizado em seu apartamento na Barra da Tijuca. O ex-médico, apesar de não possuir registro para atuar no estado e não ter formação em cirurgia plástica, contava com mais de 600 mil seguidores no Instagram, onde a fama capturava novos clientes e criava um sucesso profissional fundamentado não na técnica, mas na propaganda.

Paul Offit, conceituado pediatra americano, é uma das principais faces públicas em defesa do consenso científico de que vacinas não causam autismo. A farsa, criada pelo britânico Andrew Wakefield em artigo sobre a vacina tríplice viral, publicado em 1998, na revista The Lancet, é uma clássica obra de charlatanismo - Wakefield tinha pouco antes tentado patentear em benefício próprio uma vacina para ocupar o lugar da vacina segura, eficaz e amplamente utilizada que ele tentou desacreditar. Formalmente, a tentativa falhou: o médico teve sua licença cassada, a revista retraiu a publicação, colegas e alunos denunciaram irregularidades e fraudes nas pesquisas. O movimento antivacina, porém, mais de vinte anos depois da publicação do artigo, permanece inspirado e ancorado pela peça de ficção desenhada para enriquecer o autor.

A distinção entre práticas adequadas, baseadas em ciência e aquelas enganosas, nem sempre é tão fácil. A medicina alternativa engloba um conjunto heterodoxo de práticas que se diferenciam da medicina pela ausência de fundamentos biológicos plausíveis, testes, possibilidade de testagem ou cuja a eficácia já se encontra refutada. Segundo Offit, a medicina alternativa pode se tornar charlatanismo de quatro maneiras, a saber: pela recomendação contra terapias convencionais, comprovadamente úteis; pelos possíveis danos causados pela prática alternativa; pela drenagem de recursos financeiros do paciente e pela promoção do pensamento mágico.

Um famoso jornalista televisivo, brasileiro, falecido em 2017 em decorrência de um câncer, que abandonou o tratamento convencional e iniciou dieta cetogênica como forma de terapia, relatava pagar 50 mil reais semanais pelas práticas e imaginava estar em processo de recuperação. A fantasia vendida a ele encontra ressonância nas livrarias brasileiras, em canais do YouTube, em redes sociais como Facebook e Instagram e em programas televisos. O progenitor dela, e aqueles que reverberam suas ideias, permanecem as propagando no país.

Em meio a pandemia da Covid-19 novas farsas se disseminam. Mesmo na ausência de uma relação direta e aparente de benefício pessoal, recomendações inadequadas e perigosas, como o uso profilático de hidroxicloroquina essencialmente se unem ao charlatanismo pelo elemento de desprezo ao método científico e, potencialmente, servem de catapulta para a carreira daqueles que as propagam a uma população que clama por novas possibilidades. O tempo dirá até quando e qual o preço da convivência com o obscurantismo.”


Referências:

1. Offit, Paul A.Killing us softly: the sense and nonsense of alternative medicine. London: Fourth Estate. 2013.

2. Deer, B. (2011). How the vaccine crisis was meant to make money. Bmj, 342(Jan11 4), C5258-C5258. doi:10.1136/bmj.c5258

3. Ferner, R. E., & Aronson, J. K. (2020). Chloroquine and hydroxychloroquine in covid-19. Bmj, M1432. doi:10.1136/bmj.m1432

4. Conselho de medicina suspende exercício profissional de médica que associou soro de imunidade ao coronavírus. G1, 14 abril. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2020/04/01/medica-que-associou-soro-da-imunidade-ao-novo-coronavirus-faz-acordo-com-o-mp-para-pagar-indenizacao-de-r-18-mil.ghtml. Acesso em 20 maio. 2020.

5. O que sabe do caso do Dr. Bumbum, preso nessa quinta-feira com a mãe. G1, 18 Jul. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/07/18/o-que-se-sabe-do-caso-do-dr-bumbum.ghtml. Acesso em: 20 maio. 2020.

6. Marcelo Rezende, a opção pelo tratamento alternativo. VEJA SP, 26 set. 2017. Disponível em: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-escolha-de-rezende/. Acesso em: 20 maio. 2020.

 
 
 

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