Masculinidades e saúde: por que os homens retardam a busca por assistência médica?
- Jornal A Sístole
- 8 de set. de 2022
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Por Helena Vieira Goudard
“Os homens têm dificuldade em reconhecer suas necessidades, cultivando o pensamento mágico que rejeita a possibilidade de adoecer. Ainda, os serviços e as estratégias de comunicação privilegiam as ações de saúde para a criança, o adolescente, a mulher e o idoso” (PNAISH, 2008).
Esse trecho corresponde à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), decretada em 27 de agosto de 2009, a fim de garantir a equidade, integralidade e humanização durante o atendimento a homens da faixa etária entre 20 e 59 anos. Tal grupo raramente é abarcado por políticas públicas e ações de prevenção e promoção de saúde, justamente devido aos estigmas de gênero: consideram o homem economicamente ativo como “invulnerável”, que não necessita de cuidados, em contraponto à fragilidade imposta ao gênero feminino - o que causa um distanciamento e negação de recintos de atenção à saúde (CONNELL, 1995).
O documento também destaca que essa masculinidade é histórica, social e culturalmente construída continuamente, e pode comprometer o acesso integral à saúde do homem ao causar o aumento do risco e vulnerabilidade à saúde. Assim, o entendimento dessa influência das múltiplas e fluidas masculinidades na procura pelo bem-estar em sua integralidade é necessário para que haja a promoção de equidade no âmbito da saúde, principalmente na atenção primária.
Na sociedade patriarcal em que vivemos, os homens crescem cerceados por estereótipos de força, invulnerabilidade e independência, inclusive em relação à saúde. Dessa forma, a maior parte da população masculina recusa-se a procurar os serviços de saúde, o que vem a acontecer apenas em casos de urgência e doença já estabelecida (GOMES, 2003; SCHRAIBER et. al., 2010). Essa recusa é vista como uma forma de provar suas “autonomias” diante da masculinidade tóxica a qual são submetidos, pois buscar ajuda os fariam “menos homens”. Estudos também apontam a preferência dos homens por serviços de saúde de maior complexidade, como hospitais e serviços de urgência, além de farmácias (PINHEIRO et. al. 2002; NASCIMENTO et. al., 2011).
Além disso, essa parcela da população também tem mais dificuldade na realização do autocuidado, porque qualquer forma mínima de vaidade é associada ao público feminino - uma construção social e histórica que tem como consequência uma realidade de exclusão às intervenções preventivas e aos serviços de saúde como um todo. Isso leva ao quadro de diagnóstico tardio, pior prognóstico e menor sobrevida e qualidade de vida do paciente afetado. Tal panorama é comprovado por dados da saúde que observam que os homens na faixa etária de 20 a 59 anos adoecem e morrem mais que as mulheres desta mesma idade (SOUZA et. al., 2011). De acordo com o Ministério da Saúde, o perfil nacional de morbimortalidade dos homens está vinculado com a violência, o uso de substâncias psicoativas,acidentes de trabalho e de trânsito e, justamente, à baixa procura de serviços de
saúde, o não cumprimento de tratamentos indicados e o medo de ser diagnosticado com doenças (BRASIL, 2002).
Um dos principais agravos que acomete esses usuários é o câncer de próstata, justamente o quemaisacometeoshomensemtodoomundo,semconsiderarostumoresdepelenão melanoma. No Brasil, estima-se, em cada ano do triênio 2020-2022, 65.840 casos novos de câncer de próstata, apontando um risco de 62,95 casos a cada 100 mil homens. Essa malignidade ocupa a primeira posição no país em todas as regiões do Brasil (INCA,2019) e a extensão da doença, no momento do diagnóstico, influencia diretamente a sobrevida do paciente. Dessa maneira, no caso do câncer de próstata, o exame de rotina realizado é o de toque retal, contudo muitos homens recusam-se a fazê-lo porque se sentem constrangidos porumasuposta violaçãodesuasmasculinidades-oqueresultaemumdiagnósticotardio da doença, pressupondo um pior prognóstico. Esse diagnóstico ainda traz a esse grupo um sentimento de vergonha, vulnerabilidade e “inutilidade”, pois a função social que lhes é imposta é a de “provedores”, e a doença pode significar ausentar-se do trabalho.
Deve-se fazer, também, recortes dentro da própria masculinidade, pois ela pode se manifestar com a influência de variações regionais, culturais, de sexualidade e de cor, gerando interseccionalidades. Moradores da zona rural, por exemplo, têm ainda mais dificuldade para a realização de exames de rotina, pois, para além de uma maior dificuldade de acesso, existe um sólido pensamento cultural e tradicionalista impedindo a procura por atendimento (SOUZA et. al., 2011).
Ademais, a masculinidade impõe como padrão de comportamento esperado de homens a repressão de seus sentimentos. Kimmel (1998) discute que esse autocontrole, em que seus corpos são transformados em expressões de dominação, é uma das formas pelas quais os homens estão sujeitos a se provarem como homens constantemente. O controle emocional exacerbado impossibilita que eles expressem as suas angústias, suas dificuldades e até mesmo o amor – a masculinidade só permite a manifestação da raiva, da agressividade e da impulsividade.
Sob a ótica da saúde mental, esse cenário, a longo prazo, pode acarretar distúrbios ou transtornos mentais. Dados do Ministério da Saúde comprovam que os homens apresentam maior mortalidade por suicídio: 79% já que tardam em procurar auxílio médico (BRASIL,2017). No que diz respeito à interseccionalidade de raça, no Brasil, homens indígenas são os que mais cometem suicídio comparados a brancos e negros, principalmente na faixa etária de 10 a 19 anos (BRASIL, 2017). Ainda segundo Kimmel (1998), a principal forma de “se provar homem” é a intolerância e depreciação de outras formas de ser homem, o que se materializa em violência. Segundo o Atlas da violência (2017), os homens jovens negros e de baixa escolaridade representam a maioria dos indivíduos com mais chances de morrer no Brasil. Inevitavelmente, isso acarreta danos mentais a esses indivíduos, unindo-se a questões como a da violência policial.
Portanto, os aspectos socioculturais colaboram para a reprodução dos parâmetros de como ser um homem, em razão das práticas sociais construídas a partir do sexo, afastando-os dos serviços de saúde e da detecção precoce e prevenção de doenças. A negligência com sua própria saúde tem raízes na identidade masculina, em que admitir vulnerabilidade de qualquer tipo é incompatível com o gênero e a sua “essência masculina” é provada através
da violência: não só de homens em relação às mulheres, mas do homem sobre o homem e do homem sobre si mesmo.
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