ESPAÇO ABERTO: PESTE ACRÔMICA
- Jornal A Sístole
- 29 de jun. de 2021
- 2 min de leitura

Por: Ramila C.L. Tostes
Em algum momento ela reapareceria, a peste. Prevista, histórica, repetida, humana. A peste, de 2020, ao contrário das outras, veio sem cor. Sem jeito. Sem forma. Não escolheu o que matar. Nem como. Matou de raiva. Matou de cansaço. Matou de desespero. Matou por falta de estratégia. Matou de medo. Matou através da urna. Matou por nacionalismo. Matou por capitalismo. Matou pela desigualdade. E, paradoxalmente, a peste até então acrômica, matou pela cor.
Parou o seu sonho no meio, não perguntou pra quando era o projeto. Não pediu licença pra levar o seu hobby ou o seu ser amado. Não marcou hora pra chegar e não deu sinais de saída. Aguardou, de forma minuciosamente calculada, por cada erro. Deixou-se ser encantada pelo falso milagre da caixinha de inas. De nitas. De mentirinhas. De profetas indubitavelmente desesperados pelo barco que afundava sob seus olhos. E olhou. Olhou nos olhos da Ema e parecia acreditar. Mesmo. Que a eterna Ilha de Vera Cruz, colônia de todos os outros, acertava. Sozinha e apenas. O mundo era um. Aqui, o carnaval era outro.
A peste, feia de tudo, incolor e crua, azeda, amarga, triste. Até então igual ao que previam. Igual ao que viveram. Mas, fez mais do que as outras. Porque ela doeu agora e doer agora sempre significa mais. Ela doeu no século XXI. Ela doeu no ápice da ciência. Ela doeu quando a viagem pra Marte estava marcada. Ela se enfiou no meio do caminho da robótica. Não matou robôs, mas tentou fazer de nós repetidores, incansáveis, da mesma rotina. Entrou quando a porta estava aberta, se não era vírus, era mais uma tarefa. Era mais uma notícia. Era mais uma morte. Era mais um ente querido. Era mais uma negativa de vacina. Era mais um escândalo de corrupção. Era mais um negacionista na família. Era mais uma disparidade local. Um número a mais de pobre. Um gás que subiu. Um arroz inalcançável. Um corte de verba na universidade pública. Um burnout. Um tombo. Uma CPI. Uma farsa. Um cansaço. Um SUS... que respira? A peste. Feia de tudo, incolor e crua, entrou, de alguma forma. E até o que era pra ser positivo recebeu o triste apelido de tóxico.
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