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ENTREVISTA: SAÚDE MENTAL E IDENTIDADE DE GÊNERO

  • Foto do escritor: Jornal A Sístole
    Jornal A Sístole
  • 29 de mai. de 2022
  • 5 min de leitura

Conheçam Matheusa, uma artista e pesquisadora de 24 anos que cursa Artes Visuais na UFES. Entramos em contato com ela para realizarmos uma entrevista acerca das pautas de identidade de gênero e Saúde Mental da População LGBTQIA+.


Como foi o processo de reconhecimento de sua identidade de gênero?

Desde criança eu me percebia em um lugar que não era meu. Eu tinha muito contato com meninas, mas quando tinham coisas como festa do pijama, eu não podia ir porque eu era vista como menino; ao mesmo tempo eu não era amiga dos meninos porque eu era feminina demais para eles. Fui crescendo uma criança sozinha em alguns aspectos. No ensino médio, encontrei meninas trans e, a partir dali, passamos a nos aproximar. Éramos em 5 e hoje 3 transicionam: eu e outra amiga estamos em um lugar de não homem e não mulher; esse grupo de apoio foi incrível para mim. Lá na escola, tinham muitas pessoas que estavam preocupadas em ”perder o bv”, enquanto a gente estava preocupada em não ser homem ou não ser mulher e procurar uma coisa em que a gente pudesse se encaixar. Quando entrei na universidade, busquei me encontrar para falar sobre esse tema com os outros. Eu entrei no curso de Artes, passei a ler muito e encontrei artistas que também discutiam isso. Logo, percebi que se trata de uma questão de catalogação: o gênero é uma estratégia colonial que nos obriga a escolher um lado e, a partir do momento que você não cumpre seu papel, você está errado. Se sentir um erro foi um problema, já que vim de berço católico, mas ao perceber que essa classificação não era culpa minha, comecei a me desprender dessa ideia. Percebi, então, que eu deveria me apresentar de alguma forma para as pessoas. Sempre gostei muito de jogos e percebia as coisas de forma estratégica; ao mesmo tempo, para ser uma pessoa negra e LGBT no brasil é necessária muita estratégia. Então, começei a me impor com o gênero “bicha” onde é possível e onde essa identificação não me violenta.


Como você lida com a Saúde Mental, fazendo parte dessa população?

Sobre depressão nessa comunidade, eu venho de um lugar de privilégio em que eu tive uma rede de apoio no ensino médio. Lá eu entendi que eu não sou um erro ou uma falha e, se eu for uma falha, não sou uma coisa ruim dentro desse sistema. Também tem a minha mãe; a gente se respeita muito no que é possível. Ela é católica e, às vezes, fica sem entender: “Como você quer usar saia, mas também quer usar bigode?”. É algo confuso para ela e eu venho lidando com a confusão de uma forma muito harmônica, entendendo que isso não é um problema. Isso é uma questão da minha corporeidade e, apesar de ser bem complexo, ela (a mãe) tenta me entender. Eu sei que isso é um lugar de privilégio e sou muito bem abarcado dentro da comunidade - o que deveria ser comum, porém, mesmo assim, eu tive que lidar com pensamentos suicidas aos 11. Na minha cabeça, eu estava fora de um eixo que supostamente foi criado por alguém, que não eu, para o meu corpo.

Eu fico pensando sobre como a morte tem se tornado um caminho muito mais possível do que a vida para essa comunidade, porque o tempo que as pessoas trans têm para se explicar é muito curto. O Brasil não está preparado para assumir a própria culpa. A maioria da população é cristã - não colocando a culpa no cristianismo - mas a igreja tem o seu histórico. Não somos acolhidos nesse lugar que deveria acolher. O medo pode ser usado como combustível ou pode ser seu pior inimigo, daí vem os pensamentos suicidas. Tenho amigas trans que já tentaram suicídio por medo. “Minha família não vai me aceitar”, “Vou ter que morar na rua e me prostituir”, “Vou morrer aos 35”. Isso leva ao pensamento de “É melhor eu morrer logo, eu ter a autonomia de tirar a minha vida do que perder ela para alguém que não entende a complexidade do meu corpo”. Quando falo de mim, às vezes eu usava bigode e vestia “top”. Eu ficava assustada porque eu não ia passar um recado direto sobre o que eu era para as pessoas, e a dúvida pode ser um combustível enorme para maldade. Eu precisava estar sempre um passo à frente, mas é cansativo ter de estar sempre atenta.


Toda essa consciência e esse sentimento de imposição do seu valor vem de onde?

Eu não existiria se não fosse minha mãe. Quando eu resistia aos pensamentos suicidas, aos 11 anos, ela foi um dos fatores que me fez não sucumbir. Eu vejo que ela me deu respostas para perguntas que eu não tinha feito: que sentiria minha falta, que me amava. Logo, eu fui entendendo que nós não somos possíveis sem outras pessoas. Eu não seria possível sem minha mãe, sem minhas amigas de infância e adolescência, sem minha terapeuta.


Você já sentiu receio de falar sobre saúde mental, ansiedade, depressão, por medo do julgamento ou alguma reação negativa?

Esses assuntos eu costumo tratar somente com quem tenho afinidade. É um lugar constituído de muito tabu. O medo é muito presente na minha vida. No entanto, tenho um trabalho cujo título é “Por Trás do Medo Está a Liberdade”, em que venho tentado não deixar o medo me vencer, mas não tento vencer o medo, o que deve ser uma coisa inalcançável ou muito difícil de se conquistar. Então, eu tenho sim medo de falar, de me posicionar, de me impor, mas por trás do medo está a liberdade. E quando venço, vejo que acabou e começo a me reorganizar para um novo desafio, onde também há medo - e percebo que este também não pode me vencer. Em seguida, vou para o próximo desafio...


Como você chegou a um profissional que pudesse te orientar, no caso sua terapeuta?

Eu tenho um histórico com vários psicólogos. Eu comecei quando criança, houve uma época em que estava bem agressiva, então minha mãe me levou. Eu tive esse acompanhamento com o psicólogo por um tempo considerável e ele começou a relativizar muitas coisas, como o bullying. Ele tentou transferir essa culpa para mim e eu não quis mais ir. Passei um tempo sem fazer terapia e no ensino médio eu voltei porque comecei a ter crises de vômito por conta da ansiedade. Ao entrar na universidade, parei de ir e só voltei a ter acompanhamento uns dois anos depois. Eu encontrei a minha terapeuta atual através do site “Mapa da Saúde Mental”, que é um projeto com psicólogos de vários lugares do país; ela se interessou pela minha história e então nos encontramos.


O que você diria para alguém que está passando por esse momento de descobrimento e identificação?

Nós não podemos deixar as violências serem precursoras da nossa história. No meu caso, não posso deixar que o racismo e a LGBTfobia sejam ditadores da minha história. Como? Encontrando, no meio de toda essa dor, um motivo e se agarrando a ele. Eu venho me agarrado em contrariar. Na Arte, venho me agarrando à mentira como um discurso real e possível. Eu precisei me sentir perdida para me encontrar. Quando me encontrei, me agarrei na ideia de contrariedade e isso me manteve viva. Se agarre ao seu estudo, ao seu trabalho ou a qualquer coisa que te faça bem. Não deixe isso te tornar pequeno, pois coisas maiores, como as violências, vão acontecer e se não tivermos uma âncora, podemos afundar.

 
 
 

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