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ENTREVISTA: SAÚDE DA POPULAÇÃO LGBTQIA+

  • Foto do escritor: Jornal A Sístole
    Jornal A Sístole
  • 28 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura


“A luta contínua por equidade na prática”


Mediada por Ramila Cristina Lopes Tostes


O jornal A SÍSTOLE, no entendimento de seu compromisso social em trazer informações e representatividade aos mais variados campos de atuação em saúde, a fim de fomentar o debate crítico e legítimo entre estudantes e profissionais sobre toda e qualquer particularidade humana, tem a honra de apresentar aos seus leitores a entrevista realizada com Giacomo Martins Menegazzo, 25 anos, homem trans, médico formado pela UFRJ-Macaé e residente de cirurgia geral da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo para abordar algumas das especificidades do tema “Saúde da População LGBTQIA+”.

1. Enquanto paciente pertencente à comunidade LGBTQIA+, o que você considera, até aqui, como algo marcante/fundamental em toda a sua trajetória na busca por profissionais da saúde que lhe atendessem de forma satisfatória?

Assim como muitos na comunidade LGBTQIA+, eu sempre tive muito receio de falar abertamente sobre minha experiência, no meu caso enquanto uma pessoa transgênero, para os profissionais da saúde que me atendiam. E acredito que muitos deles não estavam preparados para manejar isso no meu cuidado, por falta de preparo e conhecimento. Quando procurei profissionais especializados em atendimento à população LGBTQIA+ isso mudou, e aí sim consegui encontrar o acolhimento imprescindível ao cuidado continuado. Isso aconteceu quando decidi iniciar minha transição, e fui buscar acompanhamento multiprofissional, mesmo porque pelas portarias atuais é necessário 1 ano de acompanhamento com endocrinologista, psiquiatra e psicólogo para iniciar a transição hormonal e qualquer cirurgia de redesignação de gênero. Quando iniciei meu processo eram necessários 2 anos, e somente aí encontrei profissionais preparados para me atender, com quem me sentia seguro. Entretanto, o cuidado à população LGBTQIA+ é muito mais que isso, é necessário preparar profissionais de todas as áreas da saúde para esse tipo de cuidado. O SUS prevê isso, desde 2008, pelo Programa Mais Saúde - Direito de todos. Nele, a política LGBT visa justamente propor medidas para extinguir o preconceito e a discriminação dentro dos espaços do SUS. Entretanto, essa não é a realidade na maior parte das vezes.

2. Durante a sua formação médica, como você caracteriza o seu processo de produção de conhecimento acerca das temáticas que envolvem a saúde da população LGBTQIA+? Você percebia o ambiente universitário como aliado nessa produção?

Encontrei muitos indivíduos interessados e dispostos a serem aliados na produção de conhecimento em relação à saúde da população LGBTQIA+, com iniciações científicas, projetos de extensão e simpósios. A UFRJ-Macaé proporciona no internato a participação do Ambulatório LGBT vinculado ao programa Consultório Na Rua da atenção primária de Macaé, que certamente produziu conhecimento e sentido inigualáveis na minha educação médica. Mas, se considerarmos a grade curricular do ensino médico como um todo e a estrutura pedagógica do ensino, existe uma falha imensa. Não somos preparados para lidar com as particularidades da população LGBTQIA+ durante o curso, as disciplinas não abrangem o tema suficientemente, com pouquíssimas aulas teóricas sobre identidade de gênero e orientação sexual, o processo de transição de gênero, as portarias do SUS que determinam o cuidado a essa população na rede e as particularidades da saúde dessa população nas variadas especialidades do conhecimento médico.

O ambiente universitário certamente dispõe de uma grande quantidade de aliados, que fazem toda a diferença e tentam trazer isso da melhor maneira que podem, mas o currículo não abrange e abraça essa questão.

3. Enquanto médico, como você encara os desafios de colocar em prática as políticas e os programas desenvolvidos pelo SUS e direcionados à saúde da população LGBTQIA+?

Quando o sistema se demonstra ignorante aos próprios programas, seja por meio do fluxograma de como acessá-los ou mesmo quando se interpõem diversas barreiras burocráticas para se colocar em prática tais programas, é realmente difícil conseguir exercer o cuidado da forma ideal. Existe muito o que fazer na prática individual e na prática de equipe, mas é preciso, de fato, universalizar o acesso e a promoção do cuidado à população LGBTQIA+.

O nome social, como direito de todo usuário do SUS, foi proposto em uma portaria de 2009, mas o nome de registro, que precisa estar no cadastro nos prontuários, é colocado ao lado, muitas vezes na frente do nome social, majoritariamente sendo usados ambos consecutivamente nas passagens de plantão, nas visitas, inclusive à beira do leito, nas evoluções. É violento. E quando digo disso me baseio na minha experiência como usuário e profissional de saúde. Existem programas do SUS com foco na comunidade LGBT que agem de forma oposta, respeitando a identidade de gênero e a orientação sexual de seus usuários, mas no geral, o que se vê nos serviços é muita ignorância. Ignorância até para encaminhar esses usuários aos programas da rede local voltados a essa população.

Digo isso pois entendo que meu papel e o papel de todos nós é mudar esse contexto. As portarias existem, precisamos promovê-las e protegê-las. Precisamos ampliá-las, pois ainda existe muito a ser desconstruído dentro do sistema. Reiterar essas políticas públicas na prática individual é o mínimo.


4. A partir da sua experiência pessoal, da sua formação e da sua prática médica, o que você considera particularidades gerais básicas e, ainda assim, essenciais no processo de cuidado da população LGBTQIA+ que todo estudante de medicina ou médico(a) deveria procurar conhecer?

Se educar sobre orientação sexual, identidade de gênero, não binariedade de gênero, teoria Queer e interseccionalidade de gênero, raça e classe deve ser o objetivo. A maior parte das violências nasce da ignorância. Entender as particularidades dessa população dentro da sua prática médica, na sua anamnese, seja em qual especialidade se estiver, não só aumenta o vínculo com os usuários, como torna sua terapêutica mais eficaz, por produzir muito mais sentido no indivíduo.

Respeitar o nome social, os pronomes corretos, não atribuir uma orientação sexual arbitrária ao seu paciente, não reproduzir LGBTQIA+fobia. É preciso entender quem compõe a comunidade LGBTQIA+ para que isso ocorra, o que me soa óbvio, mas sei que não é para muitos profissionais de saúde, justamente por ignorância. O lado bom é que ignorância é facilmente derrotada por informação.

Aprender sobre os programas do SUS também é imprescindível, não podemos utilizar artifícios que não conhecemos como ferramentas no cuidado do usuário.

 
 
 

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