Entrevista: Médica e Graduada em Letras
- Jornal A Sístole
- 31 de out. de 2021
- 7 min de leitura

É possível a segunda graduação depois da medicina?
(Quantas Anas cabem em uma?)
Entrevistada: Ana Luisa Rocha Mallet
Mediado Por: Rachel Boechat
Ao falarmos a público, já no terceiro ano do ensino médio, que a nossa escolha de futura profissão está na medicina, muito é esperado de nós. As pessoas criam uma expectativa gigantesca, a imagem de profissional bem-sucedido já circula na imaginação do público. Nossos pais falam orgulhosamente sobre isso e se sentem aliviados, porque sabem (como se realmente fosse presumível esse futuro) que tudo está resolvido, “meu filho (a) vai salvar vidas” é a fala e o sentimento. E nós, estudantes, cheios de inseguranças, medos e apreensões também acreditamos nessa história e nos dedicamos por completo a ela.
Entretanto, ao entrarmos na faculdade de medicina, percebemos que o buraco é muito mais embaixo – como a minha mãe diz. A verdade é que a medicina realmente é um curso maravilhoso e a carreira médica, de fato, possui privilégios quando comparada a algumas outras profissões. Mas existe um preço. O preço é a doação do nosso tempo. O tempo que usamos para ler, investir na nossa saúde, conhecer outros assuntos e para ser livre. Com o passar do tempo, apesar de não ser, começamos a encarar a faculdade de medicina / profissão médica como o nosso cárcere. Abrimos mão de nossos hobbies e atividades que nos dão prazer para nos dedicar a esse conhecimento. Não é incomum o médico ou o estudante de medicina com, pelo menos, uma das seguintes características: transtorno do sono, depressão, ansiedade, uso de drogas (álcool, tabaco, substânciasilícitas...), em sobrepeso ou sedentário.
Que ironia, não é?! Mas é a verdade, não sabemos nos cuidar,porque buscamos por muito tempo (muito tempo mesmo) o sucesso profissional, exatamente da mesma forma que nos foi atribuído ainda na escola. Por isso, como forma de libertação e desconstrução de todo esse conceito social, apresento a vocês a professora Ana Luisa Rocha Mallet, médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e doutora em cardiologia pela UFRJ, médica do Hospital Federal de Bonsucesso e da UFRJ, professora da Universidade Estácio de Sá, sócia fundadora da Livraria Largo das Letras, graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e orientadora do Projeto de Extensão “Arte na Veia – Minha Vida dá Um livro”.
Para mim, Ana. Ressalto esse fato porque a simplicidade do nome - Ana - encaixa perfeitamente no ser que ele representa. A Ana é bondosa, acessível e empática, mas não se enganem,ela também é inteligentíssima e cheia de títulos (do jeito que a comunidade acadêmica gosta, mas para ela é só mais uma parte da sua trajetória de vida). Como pode alguém ter lido tantos livros, ter uma livraria, ser professora universitária e cardiologista? Quantas Anas cabem em uma? A Ana tem sido a minha inspiração desde que a conheço e espero que, a partir desta entrevista, vocês se inspirem nela também. Não precisamos ter certeza do nosso futuro e nem abrir mão de fazer outra coisa além da medicina. Tudo é possível. Eu sempre falo que em uma vida paralela faria reconstrução de museus e falaria diversas línguas, quem sabe eu não consiga fazer isso ainda nessa vida e sendo médica?
1 - Qual foi a sua principal motivação para realizar a segunda graduação? Houve arrependimento quanto ao curso de Medicina?
Nunca me arrependi de ter feito Medicina, mas como sempre gostei muito de ler, sentia falta de ter a literatura mais presente na minha vida. Achei que cursar Letras seria uma maneira de garantir um tempo para a leitura. E como comecei logo depois de ter terminado o mestrado em cardiologia, estava numa fase um pouco mais tranquila.
2 - Precisou estudar novamente para o vestibular?
Na verdade, não estudei não. E por sorte, como também sempre gostei de história, a parte específica da UERJ abordou temas que eu conhecia relativamente bem. Tem uma coisa engraçada que foi o fato de que você não poderia tirar zero em nenhuma das provas para não ser eliminado - na prova de física fui tentar responder com o que eu sabia (ou na verdade não sabia) e acertei só uma das quinze questões. Aí na prova de química não tive dúvida – marquei tudo uma letra só – acho que acertei 4 ou 5. Como fui muito bem nas provas discursivas, acabei tirando primeiro lugar na Letras da UERJ.
3 - Como foi estudar, por anos, disciplinas tão distantes do curso de Medicina?
Foi maravilhoso, me sentia muito tranquila. E sendo uma segunda graduação, não tão competitiva como a medicina (que, infelizmente, é um curso muito competitivo), conseguia me dedicar às matérias que mais gostava e que eram as ligadas à literatura e dava menos atenção às gramáticas. E Letras foi minha 3ª tentativa – cheguei a cursar 2 períodos em Sociologia na PUC junto com a Medicina e fiz um período de História na UFF, também durante a graduação médica. Mas foi na Literatura que realmente encontrei maior prazer.
4 - Hoje em dia, consegue fazer a integração entre o curso de letras e de Medicina?
Vou tentando né..... tanto na Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, onde sou professora há 21 anos, quanto na UFRJ, onde sou médica, tento sempre fazer essa integração, tanto na disciplina de Habilidades de Comunicação que temos no 5º período na UFRJ, quanto na disciplina de Aperfeiçoamento da Linguagem que é uma eletiva na Estácio.
E o projeto de extensão “Arte na Veia – Minha vida dá um livro” permite também que possamos organizar uma série de atividades que liguem as artes, em especial a literatura, ao cuidado em saúde. E participar do Arte na Veia com os estudantes tão maravilhosos que temos é encantador e uma grande felicidade – revigora mesmo.
Mas queria dizer também que acho que a literatura, de alguma forma, me ajuda a ler um pouco melhor o mundo. E nesse mundo estão as relações que mantemos – as relações com os pacientes, com os outros profissionais de saúde, com nossos amigos e nossa família.
5 – Você acredita que fazer uma segunda graduação acrescentou no seu olhar clínico?
Acho que sim. Acho que fiquei um pouco mais atenta aos detalhes, principalmente ao discurso do paciente. E não só ao que ele fala, mas também a como ele fala. E atenção também aos silêncios que acontecem durante o encontro clínico e o que eles podem querer nos dizer.
6 - Faria algo diferente se tivesse feito Letras antes da Medicina? Ou acredita que foi o melhor caminho?
Uma pergunta difícil de responder – mas acho que se eu fizesse Letras antes da Medicina, dificilmente chegaria na medicina. Eu sinceramente penso que a medicina precisa muito mais da literatura que o contrário. Vou tentar explicar melhor – a parte técnica da medicina é bastante interessante, mas, para mim, ela se esgota depois de um tempo. Trabalhei durante 14 anos em um dos melhores hospitais do Rio de Janeiro - o Pró-Cardíaco – mas, depois de um tempo, aquilo já não me satisfazia. Acho que talvez se fizesse Letras antes eu não fosse sentir essa necessidade da medicina. Claro que aí tem um outro aspecto a ser considerado – o aspecto econômico. Por mais que a gente saiba que o médico deva ser mais valorizado (assim como todos os demais profissionais de saúde), a gente não pode negar que estamos, na média, em condições muito melhores que a esmagadora maioria da população. E talvez essa condição relativamente estável não fosse obtida com tanta segurança na literatura. Não tenho registrado conscientemente que isso tenha interferido na minha escolha quando fiz vestibular, mas talvez no inconsciente tenha tido algum peso. Sempre considerei a profissão médica muito bonita e é um privilégio quando nos permitimos nos colocar ao lado do paciente de forma genuína, o que nem sempre conseguimos. E também sofremos quando nossos pacientes morrem, principalmente aqueles com os quais nos identificamos mais.
7 - O que você aconselha ao estudante de medicina com a sua trajetória? Quais perspectivas você adquiriu com essa experiência que mudou a sua carreira como médica?
Difícil dar conselhos. Mas uma coisa que tenho certeza é de que dedicar-se apenas ao conhecimento teórico e técnico da medicina não satisfaz outras partes do nosso ser que precisam ser consideradas, com o risco de adoecermos física e mentalmente. A faculdade de medicina acaba sendo muito dura com os estudantes e deixamos de fazer muitas coisas que nos dão prazer: quantas histórias já ouvimos de quem parou de ler, parou de ir ao cinema, parou de fazer esportes, diminuiu o convívio familiar e com amigos, parou de fazer qualquer atividade que dava prazer por conta da medicina. O período inicial da pandemia na UFRJ, quando as aulas foram suspensas, mostrou isso muito claramente – os alunos voltando a realizar atividades que lhes davam prazer e dentre elas, muitas vezes, a leitura ficcional. Ficava encantada quando ouvia que eles estavam lendo e acabei que li muitas das dicas que eles deram.
Uma outra coisa que acho interessante é ter em mente que estamos sempre fazendo escolhas e que às vezes ficar trabalhando em um local que você não gosta pode se perpetuar e, ao final de 20-30 anos, você viu que não fez nada do que queria na medicina, que como eu já disse, é uma profissão muito rica – nós temos chance de conhecer uma gama imensa de experiências, de pessoas, e isso é um privilégio. Acho que não podemos esquecer nunca desse privilégio que é estar junto com uma pessoa em um momento de fragilidade e que essa relação se constrói desde o primeiro encontro com essa pessoa. E enriquece a ambas.
E para terminar vou usar uma frase que um grande amigo meu, Luiz Vaz, diz em relação à arte – “a arte é alimento para alma; se a gente tira esse alimento, mais tarde vamos precisar da arte como terapia” (que é super importante em muitos momentos). Mas como sabemos da medicina, melhor é prevenir. Então, a arte, a literatura, como alimento é uma das minhas buscas.
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