ENTREVISTA COM O HISTORIADOR DUDU BRAGA
- Jornal A Sístole
- 30 de ago. de 2020
- 6 min de leitura

Mediada por: Rachel Boechat
A pandemia que estamos vivendo no ano de 2020 devido ao Sars-CoV-2, sem sombra de dúvidas, é um evento histórico marcante para humanidade. Sabendo das peculiaridades e consequências desse momento tão particular, a equipe do Jornal A Sístole realizou uma pequena entrevista com o professor e historiador Dudu Braga para esclarecer os aspectos das ciências humanas relacionados a esse evento.
1- Como é a perspectiva de um historiador a respeito da pandemia que estamos vivendo?
R: É natural e necessário que o historiador olhe para trás e promova uma “história comparada”, até porque sua matéria prima são os fatos históricos. Portanto, ao perceber que podemos buscar respostas em tais fatos, a perspectiva sobre o presente já nasce com algumas suposições. Sabemos que o intercâmbio de doenças foi acelerado com o primeiro processo de globalização, reflexo da expansão marítima entre os séculos XIV, XV e XVI. Eduardo Galeano afirma que a dominação se deu através da cruz, da fome e da espada. Podemos acrescentar, também, as doenças (varíola, gripe, sarampo e tifo) nesse processo de ocupação. As ciências humanas percebem as mudanças do comportamento humano a partir dos grandes eventos, revoluções e catástrofes. Estamos passando por um fato histórico que, obviamente, trará mudanças sociais, psicológicas, econômicas e políticas. Não é só a existência do evento, mas a sua duração pode moldar, com mais ou menos rigor e vide o tempo para a criação e comercialização da vacina contra a COVID-19, o comportamento humano e a perspectiva de interpretação sobre o mundo que vivemos. As instituições, os Estados e as pessoas comuns talvez projetem novos horizontes diminuindo a crença otimista de que as ciências médicas podem extinguir os problemas de saúde, pois eles são cíclicos como mostra a historiografia. A comunidade científica não negou uma eminência de pandemia e aponta para novas possibilidades, porém, projetar os seus reflexos é um desafio, pois estaríamos falando, neste instante, sobre futuro. Os historiadores devem ficar atentos aos eventos, uma vez que a construção do conhecimento e a documentação destes fatos é essencial para que as gerações futuras se aproximem o máximo possível da verdade. Na era das notícias fakes e da criação de especulações tendenciosas, a narrativa deve ser coerente com as observações científicas. Ou seja, negar a ciência é execrar os fatos!
“Mas no alvorecer do terceiro milênio a humanidade chegou a uma incrível constatação. A maior parte das pessoas raramente pensa sobre isso, porém nas últimas poucas décadas demos um jeito de controlar a fome, as pestes e a guerra. É evidente que esses problemas não foram completamente resolvidos, no entanto foram transformados de forças incompreensíveis e incontroláveis da natureza em desafios que podem ser enfrentados [...] sabemos bem o que precisa ser feito para evitar a fome, as pestes e a guerra – e geralmente somos bem-sucedidos ao fazê-lo”. Noah Harari (Homo Deus).
2- É evidente que já passamos por outras epidemias anteriores, mas quais foram suas particularidades e especificidades?
R: Temos que ponderar que a ciência e a tecnologia são produtos que ascendem junto ao processo de evolução do homem. Acreditava-se que algumas epidemias eram causadas pela ira divina, atitudes pecaminosas ou castigos transcendentais durante a Idade Média. Sociedades medievais personificavam a peste como uma transfiguração demoníaca que estava além do controle e da compreensão humana. Entre 75 milhões e 200 milhões de pessoas morreram entre a Europa e a Ásia. Em algumas regiões, uma a cada três pessoas morriam da enfermidade causada pela bactéria Yersinia pestes, encontrada nas pulgas dos ratos. As condições de higiene eram precárias, os ratos que carregavam as pulgas que, por sua vez, eram hospedeiras da bactéria faziam a doença transitar entre as regiões que mantinham relações comerciais. Orações em grupo e peregrinações eram recorrentes, velas eram acessas e oferecidas aos santos para evitar a propagação da doença. Não existia a ideia de cura numa sociedade que duvidava ou negava a ciência e esperava por uma intervenção divina. A suspeita de vírus e bactérias era substituída também pela possibilidade da água ou do ar serem responsáveis pela contaminação. Os europeus foram responsáveis pelas epidemias nas Américas. A princípio, os mesmos não tinham consciência das doenças infecciosas que carregavam e não imaginavam que os nativos eram desprovidos da imunidade. Porém, alguns exploradores ao perceberem a fragilidade dos nativos perante as doenças, começaram a utilizar tais enfermidades como armas biológicas. Deixavam roupas e objetos nas matas que aguçavam a curiosidade dos silvícolas e mantinham relações sexuais com as indígenas. O povo Maia, antes de perceber que o etnocídio era culpa dos brancos europeus, imaginavam que deuses malignos voavam a noite de aldeia em aldeia infectando as pessoas com as doenças. Ou seja, como a ciência é produto do seu tempo, assim como o homem que a desenvolve, as epidemias eram vistas como intervenções das figuras mitológicas. Cerca de 50 milhões de pessoas que representavam as populações originais (ameríndios) morreram nos primeiros cem anos de dominação europeia sobre suas colônias. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios, animais frígidos e débeis, mereciam o trato que recebiam porque os seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus.
3- Qual a relevância do conhecimento histórico/filosófico em relação ao comportamento social e crítico a respeito do momento político atual?
R: “O povo que não conhece a própria história tende a repeti-la”. Ao interpretar a frase, podemos afirmar que os erros que foram cometidos anteriormente podem ser evitados. Quando usamos a democracia como ponte para pedir o seu próprio fim ou incitamos o retorno de um Estado autoritário, flertamos com os erros do passado recente do Brasil. É evidente que o executivo representa parte significativa da população, já que foi escolhido como porta voz dos anseios de uma gama significativa da sociedade. Por isso, suas atitudes servem de exemplo, sua voz ecoa mais alto, seus atos são vistos como norte e suas palavras são levadas aos quatro cantos do país. Dessa forma, o comportamento social de um escolhido tende a influenciar aqueles que o escolheram. Se nos referirmos à pandemia e às atitudes tomadas pelos maiores representantes do Estado, veremos que a falta de consciência social dessas personagens agravou ainda mais a situação. Não podemos negar também que existe uma redução e bipolarização das ideias políticas, talvez seja um legado da precarização do ensino e da educação, o que leva à diminuição do senso crítico da nossa sociedade. Negar apoio maciço à ciência, diminuir os efeitos de uma pandemia, não ter sensibilidade aos números expressivos de mortes pela doença em questão e minimizar ou desprezar as notícias que a OMS oferece, faz do Brasil um recordista de óbitos pela COVID-19. As ideologias políticas deveriam ficar em segundo plano quando tratamos de saúde pública e, assim, o Estado voltaria seus olhos para todos os enfermos de forma igualitária. A filosofia, matéria quase nula nos planos curriculares escolares pode alimentar as mentes, encorajar ideias e estimular o questionamento. Talvez, por isso, ela não seja incentivada e os seus praticantes perseguidos em muitos momentos. O conhecimento nos abençoa com o livre pensar e nos liberta, criamos asas e nos livramos dos grilhões da ignorância. Pensar na pólis é olhar para o próximo e admitir que cada atitude tem um reflexo social. O seu comportamento será sentido por todos, o cuidado que tem consigo mesmo deve ser o mesmo com o próximo. Sejamos cidadãos, sejamos humanos.
4- Em relação a fatores históricos e também no âmbito da sociologia, por que o Brasil tem a dificuldade de cumprir a quarentena de forma efetiva em comparação com outros países desenvolvidos?
R: Comparar o Brasil com os países desenvolvidos é denotar que nossa falência econômica e política leva a precarização do Sistema Único de Saúde. Ainda assim, devemos comemorar a sua existência. E por quê? Num país de tantas disparidades, onde a fome e a miséria se fazem presentes, o SUS é essencial para diminuir os efeitos negativos da pandemia. O SUS é o anjo das almas desemparadas. Mas por que não cumprimos a quarentena de forma efetiva? Além das personagens que foram citadas anteriormente, que deveriam dar o exemplo e não contribuem como deveriam, existem outras particularidades que dificultam a prática da quarentena. Somos um país rico, porém não existe uma distribuição de renda adequada, o exército de reserva de trabalhadores mantém o salário baixo, a informalidade é uma realidade e as políticas públicas para proteção da sociedade não são suficientes. Nos países desenvolvidos, a estabilidade econômica garante subsídios que protegem os seus pares, diferente do nosso país que, desde o seu processo de formação como Estado, convive com a inoperância dos seus órgãos de administração pública.
O Jornal "A Sístole" agradece ao Dudu Braga pela disponibilidade e confiança no nosso trabalho.
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