Caso Clínico: UMA CONDIÇÃO FAMILIAR
- Jornal A Sístole
- 25 de abr. de 2023
- 4 min de leitura

Por Karine M Corrêa
*nomes fictícios
Júlio*, 2 anos e 6 meses, é levado ao hospital após o aparecimento de espasmos em membro inferior esquerdo, persistente ao longo de uma semana. Criança previamente hígida, com calendário vacinal atualizado para a idade. Possui dois irmãos e pais saudáveis.
Após exame físico sem alterações significativas, é solicitada uma ressonância magnética do crânio para investigação diagnóstica.
Na imagem observa-se uma lesão gigante (4,9 cm x 7,0 cm x 5,9 cm) no lobo parieto-occipital direito de contorno irregular, lobulada. Os limites entre a lesão e a parede lateral do ventrículo direito e plexo coroide não são claros.
Júlio foi submetido à ressecção
tumoral, com boa resposta pós-operatória e exames de imagem demonstrando ausência de tumor residual. Após estudos histopatológicos e imunohistoquímicos da massa, chegou-se ao diagnóstico de carcinoma do plexo coroide, um tumor raro do sistema nervoso central, que acomete
principalmente crianças menores de 3 anos.
No dia 28 do pós-operatório foi iniciada a quimioterapia adjuvante com oito ciclos administrados em intervalo de três semanas. Houve boa aceitação do tratamento, sem complicações do quadro. Após o encerramento da quimioterapia, o paciente também foi submetido a radioterapia e, com o fim dos tratamentos, Júlio segue sendo avaliado rotineiramente, apresentando crescimento e desenvolvimento normais para a idade.
Apesar da progressão positiva da criança, a família precisou lidar com mais uma internação. Durante o período em que Júlio estava realizando a quimioterapia, sua irmã de 13 anos, Suzana*, foi levada à emergência por quadro de cefaleia e tontura com duração de duas semanas, evoluindo com confusão mental e convulsões. Logo após a admissão, ela apresentou vômitos e rebaixamento do nível de consciência, entrando em coma.
Ao exame físico, Suzana estava inconsciente e com resposta pupilar lentificada, hiperreflexia bilateral patelar e Babinski positivo bilateralmente. Optaram, então, por solicitar tomografia e ressonância com urgência.
Os exames de imagem demonstraram lesão em lobo parietal-temporal direito de aproximadamente 4 cm x 5 cm x 3 cm, com edema ao redor da massa e desvio da linha média.
Duas horas após a internação, a condição clínica da menina piorou: anisocoria, sem reação pupilar direita à luz. Foi submetida à ressecção total da massa que, após análise laboratorial, foi diagnosticada como glioblastoma, tumor agressivo de sistema nervoso central. Após a cirurgia, Suzana apresentou boa recuperação, passando, posteriormente, por radioterapia e quimioterapia, seguindo com acompanhamento intensificado.
Dois meses após o fim da quimioterapia, foi localizada uma nova massa suspeita na medula (T8-T9), sem sintomas associados (achado de exame de rotina). Foi realizada nova abordagem cirúrgica com retirada da lesão que, após análise, demonstrou se tratar de metástase medular do glioblastoma. A quimioterapia foi retomada, no entanto, o tumor segue progredindo e Suzana está sendo acompanhada, também, pela equipe de cuidados paliativos do hospital.
Você acredita que existe alguma correlação entre as condições clínicas dos irmãos?
Como duas crianças - irmãos - desenvolveram tumores malignos sucessivamente, foram feitos testes genéticos na família. Após análise, foi localizada uma mutação no gene P53 em ambos os filhos. O irmão saudável também apresenta mutação, bem como o pai. Chegou-se, assim, ao diagnóstico da síndrome de Li-Fraumeni. Você conhece essa condição?
Li-Fraumeni (SLF) é uma síndrome genética com herança autossômica dominante associada clinicamente a múltiplos tumores, muitos com início em idade precoce, relativamente rara no Brasil - com predomínio de casos no sul do país. O gene TP53 é um supressor tumoral e sua mutação está presente em 70-80% das famílias com a SLF. Como consequência, os portadores da síndrome têm chance aumentada do desenvolvimento de tumores como sarcomas de partes moles e ósseos, carcinoma adrenocortical, neoplasias do sistema nervoso central, leucemias e tumores de mama.
Como há o risco aumentado de neoplasias, é necessário um acompanhamento dos familiares portadores da SLF. No entanto, pela heterogeneidade dos tumores, estratégias de rastreio são dificilmente implementadas. Algumas sociedades preconizam exames de imagem periódicos, como ressonância magnética de corpo inteiro, além de exames físicos e laboratoriais. De modo geral, diversas estratégias são combinadas para o diagnóstico precoce dos principais tumores associados à síndrome.
Em 2022, o brasileiro Régis Mota deu entrevistas compartilhando a sua história familiar com a síndrome. Tudo começou em 2009, quando sua filha mais velha, Anna Carolina, foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda aos 12 anos, ficando bem após o tratamento. Já em 2016, o próprio pai foi diagnosticado com leucemia linfoide crônica, e o filho de 17 anos, Pedro, com osteossarcoma na perna esquerda. Foi feito, então, um teste genético na família, chegando ao diagnóstico da síndrome de Li-Fraumeni. Infelizmente, mesmo com o seguimento médico, Régis perdeu os três filhos: Anna Carolina e Pedro por câncer no cérebro; e Beatriz, a caçula, por leucemia linfoide aguda. O próprio ainda luta contra a leucemia linfoide crônica e contra o linfoma não-Hodgkin (diagnosticado em 2021), utilizando das suas redes sociais (@regisfeitosamota) para compartilhar sua história e trazer maior visibilidade para a doença.
REFERÊNCIAS
● O caso clínico apresentado é uma adaptação, para ler a versão original na íntegra acesse: Fang Z, Su Y, Sun H, Ge M, Qi Z, Hao C, Qian S, Ma X. Case Report : Li-Fraumeni Syndrome with Central Nervous System Tumors in Two Siblings. BMC Pediatr. 2021 Dec 27;21(1):588. doi: 10.1186/s12887-021-03070-8. PMID: 34961499; PMCID: PMC8711161.
● FORMIGA, M. Caracterização clínica e histopatológica da síndrome de Li- Fraumeni e síndrome Li-Fraumeni like em pacientes brasileiros. Tese apresentada à Fundação Antônio Prudente para obtenção do título de Doutor em Ciências Área de Concentração: Oncologia. Disponível em: <https://accamargo.phlnet.com.br/Doutorado/2016/MariaNFormiga/MariaNFormiga.p df>.
● “Perdi meus três filhos para o câncer por causa de uma síndrome hereditária e hoje luto contra a doença”. Disponível em: <https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/11/29/perdi-meus-tres-filhos-para-o-cancer -por-causa-de-uma-sindrome-hereditaria-e-hoje-luto-contra-a-doenca.ghtml>. Acesso em: 13 abr. 2023.
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