Caso Clínico: A CRIANÇA LETÁRGICA
- Jornal A Sístole
- 28 de fev. de 2023
- 4 min de leitura

Por Karine M. Corrêa
Menino de 6 anos é atendido na emergência com queixa de tosse e chiado há 6 dias. Além disso, mãe relata febre de 39,9 oC nos últimos três dias, associada à redução da ingesta alimentar. Há dois dias, a criança apresenta menor produção de urina. Já nas últimas 24 horas, o menino evoluiu com náuseas, vômitos e diarreia.
A história patológica pregressa inclui neurofibromatose, asma, transtorno convulsivo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e pneumonia. Em uso de metilfenidato 20 mg duas vezes ao dia; no momento, em uso de salbutamol e amoxicilina 250 mg três vezes ao dia. Nega alergias. Calendário vacinal em dia.
Mãe com neurofibromatose e diabetes mellitus insulinodependente, irmão com bronquiolite e outro familiar diagnosticado com asma. A criança mora com os pais e uma irmã em casa sem fumantes com cachorro.
Ao exame físico, criança letárgica e não cooperativa. Temperatura axilar 35,8 oC, frequência cardíaca de 129 bpm, pressão arterial 116/56 mmHg e frequência respiratória de 28 irpm. Apresentava olhar fixo; aparelho cardiorrespiratório sem alterações, sibilos ausentes; exame neurológico limitado, porém a criança moveu todas as extremidades; Pele com múltiplas manchas café-com-leite e extremamente diaforética (transpiração excessiva).
Qual a sua hipótese diagnóstica?
Exames laboratoriais: leucócitos 16.200 /mm3, sódio 140 mmol/L, potássio 2,3 mmol/L, níveis séricos normais de ureia e creatinina, porém com glicose de 31 mg/dL (VR: 60 – 110 mg/dL).
Devido a preocupações com o estado mental, uma tomografia computadorizada do crânio foi realizada com resultados normais.
Diante do quadro de hipoglicemia, a criança foi internada e medicada com múltiplas doses de glicose intravenosa nas primeiras 3 horas, apresentando melhora inicial, porém voltando a níveis hipoglicêmicos posteriormente. A glicemia normalizou nas 48 horas seguintes e a equipe informou à mãe que a medicação seria interrompida. No mesmo dia, a criança apresentou novo quadro de hipoglicemia (40 mg/dL), retomando a medicação e atingindo a euglicemia apenas na manhã seguinte.
A sua hipótese diagnóstica ainda é a mesma?
Mais um quadro de hipoglicemia (30 mg/dL) ocorreu no dia seguinte, com má resposta ao tratamento, com glicemia flutuante apesar da medicação. Foi notado, no entanto, que havia um vazamento no tubo intravenoso, possivelmente por orifício criado por agulha.
Diante da suspeita da equipe, a glicose foi suspensa novamente, sem comunicar a família. Naquele dia os níveis glicêmicos permaneceram dentro da normalidade, o que corrobora com a teoria de que a mãe estava administrando um pouco de sua insulina na criança. Assim, estamos diante de um quadro de abuso infantil perpetrado pela mãe, que foi diagnosticada com síndrome de Munchausen por procuração (SMPP), você conhece a doença?
A síndrome de Munchausen é também chamada de transtorno factício, um distúrbio psiquiátrico caracterizado por pacientes que produzem doenças, enquanto que a síndrome por procuração ocorre quando o paciente produz a doença em outro. O nome Munchausen faz referência ao barão de Munchausen, militar alemão do século XVIII conhecido por suas narrativas fantásticas e exageradas. É a mesma condição do famoso caso Dee Dee e Gypsy Rose, que foi adaptado para TV na série The Act.
O diagnóstico da SMPP é difícil, tendo em vista que, em grande parte, são crianças apresentando sintomas diversos. Há significativo risco de uso de medicações e intervenções desnecessárias quando a criança é levada para atendimento médico. Múltiplas formas são utilizadas para causar os sintomas na vítima, sendo o envenenamento a mais descrita na literatura.
São sinais de alerta típicos:
1. Doença persistente ou recorrente que não pode ser explicada
2. Discrepâncias entre os achados clínicos e a história
3. Sintomas que ocorrem apenas quando a mãe (ou suspeito do agressor) está
presente
4. Sintomas ou curso de tratamento que não são clinicamente consistentes
5. Uma mãe que aceita até mesmo exames médicos dolorosos para seu filho,
está constantemente ao lado do leito e tem experiência médica anterior, mas
parece menos preocupada do que a equipe médica com a saúde de seu filho
6. História familiar de morte infantil súbita ou inexplicável
No entanto, Munchausen não deve ser confundido com:
1. Ansiedade resultando em cuidados excessivos, mas não abusivos, para uma
criança
2. Recusa da assistência profissional resultando na persistência ou
agravamento da doença de uma criança
3. Simulação com o objetivo de algum ganho externo (por exemplo, benefícios
financeiros)
O tratamento da criança depende do que foi utilizado para causar os sintomas, mas a melhora acontece especialmente pelo afastamento do agressor. O Serviço Social precisa ser acionado, bem como a psicologia e a psiquiatria, intervindo na criança e na família. A perda da guarda da criança costuma ser inevitável, tendo em vista o bem-estar da vítima.
No caso apresentado, a mãe foi afastada da criança a partir do quinto dia de internação. Haviam sido solicitados outros exames laboratoriais que corroboraram com a hipótese diagnóstica, tais como: insulina 9.776 μU/mL (VR 5 – 25 μU/mL) e peptídeo C 0,5 ng/mL (faixa normal, 0,8 – 4,0 ng/ml). A mãe posteriormente expressou preocupação com o nível de açúcar no sangue de seu filho e confessou a administração secreta de insulina. A criança foi retirada da custódia da mãe e se recuperou totalmente.
O caso clínico apresentado é uma adaptação, para ler a versão original na íntegra, busque: Zylstra RG, Miller KE, Stephens WE. Munchausen Syndrome by Proxy: A Clinical Vignette. Prim Care Companion J Clin Psychiatry. 2000 Apr;2(2):42-44. doi: 10.4088/pcc.v02n0202. PMID: 15014581; PMCID: PMC181203.
コメント