Arte & Saúde - Por um SUS literário: as formas de narrar a saúde pública
- Jornal A Sístole
- 29 de mar. de 2022
- 4 min de leitura

Autor: Pedro Victor S. Monteiro
Imaginar a relação entre o cotidiano de profissionais da saúde pública e a produção literária pode ser um desafio para muitas pessoas. Uma hipótese que tentasse justificar esse processo indicaria que, raramente, os indivíduos que estão à procura da construção de um aprendizado sobre as políticas públicas de saúde consideram as manifestações artísticas como uma inspiração. Entretanto, o Jornal da Universidade de São Paulo (USP), no ano de 2020, construiu uma matéria que apontou a literatura como um caminho para repensar a saúde, tomando a experiência do Book Club (um clube do livro criado durante a pandemia de covid-19, pelo Grupo de Estudos em Literatura, Narrativa e Medicina - Genam) como exemplo e evidenciando que as experiências autorais observadas na literatura podem possibilitar que as pessoas repensem a própria existência.
Nesse movimento, ressalta-se a relevância de abordar as produções do Laboratório de Políticas Públicas, Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS) - da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - que foram capazes de compor uma coletânea denominada “Literatura e saúde pública”, em parceria com a Editora Rede Unida. Contando com dois volumes de publicação, o projeto foi concretizado pelo professor gaúcho Frederico Viana Machado. A revista Radis, da Fiocruz, conta que a ideia do educador surgiu da sua prática de docência no curso de graduação em Saúde Coletiva, na qual os tradicionais métodos de avaliação foram substituídos por uma tarefa pensada para desafiar os alunos a produzirem textos ficcionais relacionados à saúde.
A partir do subtítulo “A narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política”, o primeiro volume se dedica a abrir a coletânea. Com quatro seções, respectivamente denominadas “Encontros, saberes e culturas”, "Temporalidades e Ficcionalidades”, “Outras razões” e “Emergência”, a obra reúne autores de todo o território brasileiro. Dialogando sobre o ato de cuidar nos diferentes âmbitos e locais da saúde, por meio de contos, crônicas, poemas e relatos, esses autores puderam criar um mosaico de narrativas heterogêneas. A exemplo disso, o seguinte trecho de abertura do texto “Sociobiologia de porcos humanizados — uma quase ficção científica” - alocado na seção “Temporalidades e Ficcionalidades”, e escrito pelo médico e doutor em Biofísica Marcello André Barcinski - ainda revela a quantidade de debates que podem surgir da leitura desta coletânea:
Ele vinha sofrendo muito. O seu único neto, doente renal devido a uma má-formação, estava em hemodiálise fazia quase um ano. Dependente total de uma máquina na qual passava horas a fio três tardes por semana, o menino estava deixando de aproveitar uma infância que deveria ser alegre e feliz. Um eventual transplante renal, capaz de livrá-lo desse pesadelo, dependia da compatibilidade com algum familiar que se oferecesse como doador ou com algum cadáver que viesse a surgir na fila do transplante.
O avô começou lendo sobre as dificuldades de se conseguirem doadores e sobre os progressos no conhecimento da genética, definidora do sucesso, ou não, de um transplante. Primeiro na literatura leiga. Depois, aventurando-se progressivamente pela literatura científica. Leu artigos que demonstravam que o problema da escassez de órgãos para transplantes poderia ser minimizado com o uso de animais como doadores. Transplantes entre espécies diferentes! [...]
Já o segundo volume recebeu o subtítulo de “Territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte”. Dessa vez, ainda que também tenha sido escrito por autores brasileiros, o objetivo central passou a ser uma imersão do leitor nos cenários do cuidado, discorrendo, principalmente, sobre a aquisição de um novo olhar para as políticas públicas de saúde, a partir dos encontros humanos e vulneráveis que possaultrapassar os protocolos existentes. Assim, o texto “O operário e sua máquina” do estudante de enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Elton Junio Sady Prates se destaca ao se questionar sobre uma criação da coletânea possível de exemplificar esse objetivo:
É sobre pessoas, lugares, afetos e invisibilidade que eu gostaria de lhe contar. Todo cuidado é, necessariamente, o cuidado de alguém. Era um tocar sem afetar, olhar sem perceber, falar sem ouvir, medicar sem consultar. Estava com pouca roupa, com saudades de casa e um tanto debilitado. A comida era fria, e a água, por vezes, quente. O desejo de retornar para a vida aquecia-me também, mas era um lugar frio, rodeado de máquinas, aparatos, sofrimento e pessoas. Um lugar cheio e vazio de alma, compaixão e empatia. Lá pude entender que o fazer sem o outro não vale nada. Eu gritava, clamava, chorava, e ninguém me ouvia. Eles tratavam, prescreviam e, eventualmente, até curavam. Eles falavam, falavam e falavam, mas não podiam me ouvir. Alentava-me, no silêncio amedrontador que reinava, um hiato entre operador e máquina. Era uma troca de olhares, que não se encontravam, toque permissivo e sem presença. Era, de fato, só um operário operando sua máquina. Não havia espaço para outra existência. Eu era invisível e nem mesmo sabia.
Fundado na experiência dos leitores dos livros destacados, portanto, há grandes chances de identificar que o recurso literário pode servir como motivação para discutir e repensar a saúde pública brasileira. Sobretudo, diante da persistente necessidade de defender o Sistema Único de Saúde (SUS) como espaço aberto à incorporação de novidades que contribuam para as demandas plurais dos indivíduos. Tendo dito isso, o jornal A Sístole comunica que os livros podem ser baixados integralmente, e de forma gratuita, através dos links abaixo:
Volume 1 (Literatura e saúde pública A narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política): https://bit.ly/3oyRJ7y
Volume 2 (Literatura e saúde pública Territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte): https://bit.ly/3wVxyo8
Referências bibliográficas:
COSTA, Claudia. A literatura como caminho para repensar a saúde. Jornal da USP, São Paulo. 2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/a-literatura-como-caminho-para-repensar-a-saude/>. Acesso em: 9 fev. 2022.
LAVOR, Adriano de. Cuidado em todas as letras:coletânea explora interseções entre literatura e saúde pública em textos em que o SUS é protagonista.RADIS, Rio de Janeiro. 2022. Disponível em: <https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/cuidado-em-todas-as-letras#access-content>. Acesso em 9 fev. 2022.
MACHADO, Frederico Viana; CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; LIBERALI, Janaina (orgs.). Literatura e Saúde Pública: a narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política – Volume 1 / Organizadores: Frederico Viana Machado; Isabel Cristina de Moura Carvalho e Janaina Liberali; Prefácio de João Guilherme Dayrell.– 1. ed.-- Porto Alegre, RS: Editora Rede Unida, 2021.
MACHADO, Frederico Viana; CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; LIBERALI, Janaina (orgs.). Literatura e Saúde Pública: Territórios e cuidado: Gênero, família, vida e morte - Volume 2 / Organizadores: Frederico Viana Machado; Isabel Cristina de Moura Carvalho e Janaina Liberali; Prefácio de Ricardo Braga. – 1. ed.-- Porto Alegre, RS: Editora Rede Unida, 2021.
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